O globo, n.31406, 02/08/2019. País, p. 04

 

No Supremo, o limite do governo

André de Souza 

02/08/2019

 

 

Decano. Ao falar sobre Bolsonaro no caso Funai, Celso de Mello citou uma “busca autoritária” por controle do Estado

O Supremo Tribunal Federal (STF) impôs, por unanimidade, uma derrota ao governo do presidente Jair Bolsonaro no seu primeiro dia de trabalho após o recesso. Os ministros ratificaram a decisão de deixar com a Fundação Nacional do Índio (Funai) a atribuição de demarcar terras das tribos — o governo desejava que essa função ficasse com o Ministério da Agricultura.

Após duas semanas em que o presidente vem acentuando a retórica ofensiva contra adversários e instituições, o ministro Celso de Mello afirmou que Bolsonaro teve um comportamento de “inaceitável transgressão à Constituição” ao editar uma Medida Provisória (MP) transferindo a demarcação depois de o Congresso ter rejeitado outra MP de mesmo teor.

O ministro mais antigo do STF alertou para a possibilidade de ocorrer um “processo de quase imperceptível erosão” das liberdades da sociedade civil.

— O comportamento do atual presidente da República, revelado na reedição de medida provisória, (...) traduz iniludivelmente uma clara, inaceitável transgressão à autoridade suprema da Constituição e representa uma inadmissível e perigosa transgressão ao princípio fundamental da separação de Poderes —disse Celso.

O decano disse enxergar uma busca autoritária que pode ameaçar direitos:

—O regime de governo e as liberdades da sociedade civil muitas vezes expõem-se a um processo de quase imperceptível erosão, destruindo-se lenta e progressivamente pela ação ousada e atrevida, quando não usurpadora, dos poderes estatais, impulsionados muitas vezes pela busca autoritária de maior domínio e controle hegemônico sobre o aparelho de Estado e sobre direitos e garantias básicos do cidadão.

“JUSTIÇA SE METE EM TUDO”

A Constituição proíbe que seja reeditada no mesmo ano uma medida provisória que tenha o mesmo conteúdo de outra. Assim, em junho, o ministro Luís Roberto Barroso, do STF, deu uma decisão liminar suspendendo a validade desse trecho da MP. Ontem, dez dos 11 ministros do STF a referendaram. Só Alexandre Moraes não participou.

Poucas horas depois do julgamento no STF, durante uma transmissão ao vivo por suas redes sociais, o presidente reclamou da interferência da Justiça em atos do governo. Sem falar diretamente da questão da demarcação de terras, mas ao abordar o tema dos radares nas estradas federais, Bolsonaro queixou-se:

— Está uma briga, porque a Justiça em cima da gente, que quer que a gente mantenha radares multando você. É a Justiça, lamentavelmente, se metendo em tudo.

No STF, há uma lista de pautas que terão impacto para o governo. Na área econômica, vão ser julgadas ações que tratam de reajuste de servidores, de isenção tributária para entidades filantrópicas, e de taxação de aposentados e pensionistas. Todas podem criar rombos nos cofres públicos. Ações sobre a reforma trabalhista, a cessão de exploração de petróleo e gás pela Petrobras, e o frete de caminhoneiros são outras de interesse do governo.

No primeiro semestre, o governo Bolsonaro sofreu uma derrota no STF. Em junho, o plenário da Corte suspendeu a parte do decreto presidencial que extinguia conselhos da administração pública previstos em lei.

Outro julgamento de interesse do presidente é sobre o compartilhamento de dados de órgãos como Receita Federal e Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf ) com o Ministério Público sem autorização da Justiça. Em julho, o presidente do STF, ministro Dias Toffoli, suspendeu investigações baseadas nesses dados, a pedido da defesa do senador Flávio Bolsonaro (PSL-RJ).

No Congresso também há decisões que podem contrariar o presidente sendo encaminhadas. Uma delas é sobre uma portaria do ministro da Justiça, Sergio Moro, que visa a facilitar deportações, desagradando à oposição e ao centrão. Por outro lado, propostas caras ao presidente vêm sendo postergadas, como as mudanças no Código de Trânsito.

No Legislativo, o presidente já foi contrariado no caso dos decretos das armas. Após o Senado ter aprovado a derrubada da medida, ele foi forçado a recuar e alterar o texto desistindo, por exemplo, de ampliar o número de categorias com direito ao porte.

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OAB: Barroso dá 15 dias para versão de presidente 

02/08/2019

 

 

O ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal (STF), deu ontem prazo de 15 dias para que o presidente Jair Bolsonaro, caso queira, responda os questionamentos feitos pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) sobre a morte do pai do presidente da entidade, Felipe Santa Cruz. Fernando Santa Cruz militava na Ação Popular (AP), movimento contrário à ditadura militar, e desapareceu enquanto estava sob custódia do Estado.

Na quarta-feira, Felipe Santa Cruz protocolou no Supremo uma interpelação assinada por 12 ex-presidentes da OAB com um pedido para que Bolsonaro explique as declarações sobre a morte de seu pai. Na última segunda-feira, o presidente disse que, se Felipe Santa Cruz quisesse, poderia contar a ele em que condições ocorreu o desaparecimento. E sugeriu que o Santa Cruz teria sido morto por outros militantes de esquerda, versão desmentida pelo relatório da Comissão Nacional da Verdade e por outros documentos oficiais do governo, entre eles um atestado de óbito expedido pelo Ministério dos Direitos Humanos e arquivos das Forças Armadas.

“O pedido de explicações, previsto no art. 144 do Código Penal, tem por objetivo permitir ao interpelado esclarecer eventuais ambiguidades ou dubiedades dos termos utilizados. Assim, como de praxe nesses casos, notifique-se o interpelado, o Sr. Presidente da República, para, querendo, apresentar resposta à presente interpelação, no prazo de 15 dias”, diz trecho do despacho de Barroso.

No pedido ao STF, após citar reportagens publicadas na imprensa sobre o caso, os advogados justificam que Bolsonaro fez menção à participação de Fernando de Santa Cruz em organização por ele qualificada como “sanguinária”, o que indica a prática de condutas criminosas: “Referida afirmação, feita de maneira obscura e superficial, requer maior detalhamento”.

Para a OAB, a dúvida em relação à declaração fica evidente pela escolha das seguintes palavras de Bolsonaro: “Não é minha versão. É que a minha vivência me fez chegar a essas conclusões naquele momento”. O pedido é para que o presidente esclareça se “efetivamente tem conhecimento das circunstâncias, dos autores e dos locais ligados ao desaparecimento forçado de Fernando Santa Cruz”.

Além de Felipe Santa Cruz, assinam o pedido 12 ex-presidentes da OAB: Eduardo Seabra Fagundes, José Bernardo Cabral, Mário Sérgio Duarte Garcia, Marcello Lavenère Machado, José Roberto Batochio, Francisco Ernando Uchoa Lima, Reginaldo Oscar de Castro, Roberto Antonio Busato, Cezar Britto, Ophir Cavalcante Junior, Marcus Vinicius Furtado Coelho e Claudio Lamachia. (A.S.)