Valor econômico, v. 20, n. 4826, 30/08/2019. Legislação&Tributos, p. E2

 

A Amazônia e o comércio internacional

Carla Amaral de Andrade Junqueira

30/08/2019

 

 

A polêmica em torno da declaração do presidente da França em deixar o Acordo Mercosul-UE e as recentes notícias sobre os boicotes comerciais a produtos exportados pelo Brasil, nos faz refletir sobre a relação entre o meio ambiente, protecionismo e o comércio internacional.

Essa reflexão nos obriga, em primeiro lugar, a entender a diferença entre restrições comerciais de natureza puramente privadas e sanções econômicas aplicadas entre Estados. Sanções internacionais comerciais são ações tomadas pelos países contra outro e normalmente assumem a forma de proibições de comércio. Essas sanções visam desestabilizar a economia de um certo território, por meio da restrição de exportações e/ou trocas comerciais como consequência direta de determinada conduta internacional condenável.

Já os boicotes comerciais são aplicados diretamente por entidades privadas, em geral com base em normas desenvolvidas por empresas transnacionais, além de padrões de sustentabilidade defendidos por entidades não governamentais.

Atualmente, as preocupações legítimas dos países relacionadas à proteção do meio ambiente, saúde pública e animal, que justifiquem a imposição de barreiras ao comércio, podem ser discutidas e tratadas no âmbito do Órgão de Solução de Controvérsias da Organização Mundial do Comércio (OMC). Já no caso de restrições comerciais ou ainda dos chamados "boicotes" fundados em padrões privados de sustentabilidade, não existe um fórum ou organismo internacional que regule a legitimidade de sua aplicação.

No caso das queimadas da Amazônia, o assunto é ainda mais complexo. A análise das recentes medidas restritivas ao comércio dos produtos brasileiros, incluindo a eventual saída da França do acordo Mercosul-UE deve passar necessariamente pelo questionamento sobre eventual protecionismo revestido de preocupação ambiental e pela questão da soberania nacional.

O artigo 20 do Gatt (Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio) estabelece exceções legítimas às regras firmadas no âmbito da OMC, quando a circulação de bens representa uma ameaça à proteção ambiental, animal ou saúde pública. O artigo e seus incisos não deixam claro se a exceção pode ser aplicada de forma extrajurisdicional. A pergunta que se faz é, pode a França restringir o comércio internacional usando como justificativa uma preocupação ambiental com o território brasileiro? Existe a possibilidade de aplicação extrajurisdicional das exceções do artigo 20 do Gatt?

Não se pretende discutir aqui a "internacionalização da Amazônia" que tanto tem se falado. O olhar se debruça sobre as limitações jurisdicionais dispostas no artigo 20 do Gatt. A indagação é se os países, na persecução dos seus objetivos ambientais, poderiam impor embargos comerciais para assegurar mudanças nas políticas ambientais dos outros países dentro de sua própria jurisdição.

O órgão máximo da OMC, o Órgão de Apelação, no caso United States - Import Prohibition of Certain Shrimp and Shrimp Products (US - Shrimp) julgado em 1998 entendeu que sim. O caso analisou se os Estados Unidos poderiam justificar seu embargo à importação de camarões sob alegação da alínea (g) do artigo 20. Referido embargo havia sido imposto como reivindicação de que os países exportadores adotassem condutas de proteção às tartarugas marinhas, as quais estariam sendo incidentalmente extintas no momento da captura do camarão.

O Órgão de Apelação, afirmando que a finalidade do embargo americano a` importação de camarões destinava-se principalmente a` conservação dos recursos naturais, decidiu que a medida não era meramente uma proibição geral e constatou a existência da relação entre meio e fins da medida adotada e a política de preservação ambiental.

Por outro lado, o Órgão de Apelação também considerou como medida discriminatória arbitrária e injustificável a aplicação coercitiva de política padrão uniforme em outros governos sem atender as particularidades de cada região do seu território.

Além disso, de acordo com o órgão máximo da OMC, as restrições comerciais devem ser acompanhadas de restrições na produção e no consumo doméstico e aplicadas em conjunto com medidas relacionadas a` conservação ambiental. Trata-se de uma condição para a validade dessas medidas de conservação, isto é, que restrições comerciais sejam aplicadas em conjunto com as políticas internas do país que aplica de forma efetiva e cuidando para não impedir o livre comércio. O objetivo é evitar que os países importadores sejam parciais e que não criem barreiras à livre circulação de mercadorias.

As declarações do presidente da França, portanto, têm fundamento jurídico e precedentes internacionais, desde que eventuais restrições comerciais a serem impostas venham acompanhadas das políticas públicas domésticas correspondentes com os objetivos ambientais que essas medidas se propõem a alcançar. Assim, as perguntas que devem ser feitas são: os países que ameaçaram o Brasil com suspensões comerciais praticam domesticamente as mesmas políticas públicas de conservação ambiental que exigem do nosso governo? A política de conservação exigida atende as particularidades do nosso território brasileiro? A medida é aplicada indiscriminadamente a todos os demais países que não cumprem o mesmo padrão de conservação?

A resposta para essas indagações poderá nos esclarecer a legitimidade das recentes ameaças de embargos comerciais.