O globo, n.31406, 02/08/2019. Sociedade, p. 24

 

A guerra dos números no desmatamento

Bruno Góes 

Daniel Gullino

Renato Grandelle

02/08/2019

 

 

 Recorte capturado

 

 

 

Governo anuncia mudança de ferramenta e diz que dados foram ‘espancados’

Em mais um capítulo na ofensiva contra o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), o ministro do Meio Ambiente (MMA), Ricardo Salles, afirmou que há “inconsistências e erros” nos índices detectados pelo sistema Deter (Detecção de Desmatamento em Tempo Real). Ao lado do presidente Jair Bolsonaro, Salles anunciou que o governo federal contratará uma nova plataforma com imagens de alta resolução para monitorar a devastação da floresta.

Salles apontou os supostos erros em uma análise dos dados coletados pelo Deter em junho, quando os alertas de desmatamento — que são enviados a órgãos de fiscalização ambiental, como o Ibama —, atingiram 920,4 km². No mesmo mês em 2018, esse índice foi de 488,4 km², 88% menor. Em nota, o Inpe afirmou que seus técnicos pediram, mas não obtiveram, acesso prévio à análise do MMA, embora as equipes do instituto e do ministério tenham participado de reuniões técnicas.

— Não estamos aqui para negar os números nem justificar coisas que tenham sido feitas de maneira ilegal. Estamos mostrando que precisa haver muita responsabilidade na divulgação de informações — disse Salles, que não anunciou medidas para combater o desmatamento.

— O que vamos fazer daqui pra frente? Imagens que se pretendem contratar, de alta resolução, diárias. Monitoramento em tempo real. Será aberto um processo licitatório no Ibama para que essas imagens de alta resolução possam ser contratadas e aplicadas no mais curto espaço de tempo possível.

Para Bolsonaro, os números do Inpe foram “espancados” e, por isso, é preciso apurar se houve “má-fé”, por parecer que atingiriam “o nome do Brasil e do governo”.

REUNIÃO HOJE

Hoje, o diretor do Inpe, Ricardo Galvão, deve se reunir com o ministro de Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC), Marcos Pontes, a quem seu instituto está subordinado. Assim como a cúpula do governo, Galvão reitera que o Deter não é a ferramenta adequada para mapear a devastação da cobertura florestal. Esse papel cabe ao sistema Prodes, que mede as taxas de desmatamento no período de agosto de um ano a julho do ano seguinte.

Em nota, o Greenpeace ressalta que os alertas de desmatamento na Amazônia detectados pelo Deter sinalizam um aumento de 40% na devastação florestal entre agosto de 2018 e julho de 2019.

— Há uma correlação de 82% entre os alertas do Deter e o resultado do Prodes, que é divulgado anualmente —alerta Galvão.

— Os dados do Deter ajudaram a reduzir o desmatamento desde a primeira vez em que foi usado, em 2004, até 2012.

Segundo o diretor do Inpe, Sallesnun cape diu informações sobre como são realizadas as medições do desmatamento. No início de julho, quando o tema ganhou destaque no noticiário, Galvão teria enviado um ofício ao ministro, oferecendo explicações sobre as análises feitas por cada sistema, mas não houve retorno. O MMA não respondeu ao pedido de entrevista do GLOBO.

O ministro declarou que o ajudará a recompor o quadro técnico do Inep, que, segundo ele, é formado majoritariamente por bolsistas no CNPq. Galvão assina laque os membros do setor responsável pelo estudo do desmatamento têm, pelo menos, cinco anos de experiência em análise de imagens de satélite.

A estimativa prévia do Prodes é normalmente divulgada entre outubro e novembro, pouco antes da Conferência do Clima, que ocorre em dezembro. O índice de desmatamento, se for elevado, abala a credibilidade do país no encontro que reúne representantes de mais de 190 países.

Coordenador de Políticas Públicas do Greenpeace, Marcio Astrini acusa Bolsonaro de implementar um “projeto antiambiental”, que sucateou a capacidade de combater o desmatamento e favorece quem pratica o crime florestal.

—Agora, na hora de encarar as consequências de suas decisões, o presidente tenta esconder a verdade de maneira vergonhosa e culpando terceiros. Os números do desmatamento já são ruins por si só. Mentir só vai aumentar os prejuízos para o país.

Já o Observatório do Clima, em nota, avalia que o desmatamento sobe porque Salles e Bolsonaro “meteram a foice no Ibama”, reduzindo o número de operações de fiscalização e de multas: “Se o propósito é municiar o Ibama, o governo prevarica: afinal, não é por falta de satélites que o desmatamento está subindo”.

Na Amazônia Legal, o instituto está significativamente desfalcado —oito das nove superintendências do Ibama da região estão sem titular, a maioria desde fevereiro.

Ex-chefe do Centro de Operações Aéreas do Ibama, José Augusto Morelli alerta que a situação da Amazônia é “gravíssima”, e que o órgão não tem recursos materiais e humanos para desempenhar adequadamente seu trabalho.

—Nossas bases na região estão precárias. Além disso, não há equipes para substituir aquelas que estão há muito tempo em campo, já que conduzimos simultaneamente centenas de operações — explica.

— O Deter sempre foi fundamental para o nosso trabalho. Vemos uma expansão da fronteira agrícola, principalmente ao longo da BR-163, e o garimpo. O Estado tem duas opções: assumir o desmatamento, combatendo-o de alguma forma, ou negá-lo. Aparentemente, optou pela segunda alternativa.

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Maior problema é a fiscalização, não o sistema 

Ana Lucia Azevedo

02/08/2019

 

 

O Inpe tem sistemas complementares para monitorar o desmatamento da Amazônia. Um mede a dimensão do desmatamento anual. É o Programa de Monitoramento da Floresta Amazônica Brasileira por Satélite (Prodes). O segundo é o Sistema de Detecção de Desmatamento em Tempo Real (Deter) e, como indica o nome, trata-se de um instrumento de fiscalização. Ele pode até indicar uma tendência, mas não foi criado para medir as taxas.

Reconhecido internacionalmente como o melhor sistema de monitoramento de florestas tropicais do mundo, o Prodes foi criado em 1988 e é mais preciso, com acurácia de 95%. Por meio de um modelo matemático, ele combina os dados coletados por três satélites. Usa o americano Landsat-5/TM , o sino-brasileiro CBERS-4 e o indiano IRS-2. Ele capta a derrubada da floresta em áreas superiores a 6,25 hectares, o chamado corte raso.

Para as áreas onde a cobertura de nuvens impede o mapeamento no momento da passagem do satélite Landsat (ele passa pela mesma área uma vez a cada 16 dias), é feito um cálculo que estima a área desmatada. Esse cálculo se baseia na premissa de que a ocorrência de desmatamento é a mesma em áreas cobertas ou descobertas. Vale notar que as áreas sob nuvens representam, em média, somente 5% da taxa de desmatamento. O mesmo Landsat é usado pelo sistema de monitoramento internacional Global Forest Watch.

Já o Deter oferece dados diários para o Ibama e mensais para o público. Ele foi criado em 2004 para dar apoio à fiscalização. O maior problema do controle não é o Deter, mas a falta de agentes do Ibama em campo para fiscalizar as áreas apontadas por ele como desmatadas. A área é apontada, mas o governo não dispõe de gente suficiente para averiguar.

O Deter cobre áreas maiores que 25 hectares e indica tanto aquelas totalmente desmatadas (corte raso) como aquelas em que o destruição da floresta está em curso, seja por queimadas, exploração de madeira, abertura de pastagens e garimpos. Ele usa dados dos satélites sino-brasileiro CBERS-4 (o mesmo do Prodes) e indiano IRS. Para oferecer dados em tempo real, o Deter usa um algoritmo diferente do Prodes e não oferece tanta acurácia: sua margem de erro chega a 12%. Os dados de um mês também não podem ser comparados com outro porque a cobertura de nuvens é variável.

Ele pode identificar um desmatamento com base em alterações na cobertura da floresta. O algoritmo considera fatores como mudanças na cor, na densidade, na forma e no entorno da área.

Se o sistema de monitoramento da Amazônia desenvolvido pelo Inpe peca, é por ser conservador demais e não detectar todo o desmatamento. Áreas menores que seis hectares ficam de fora da resolução dos satélites e passam incólumes.