Valor econômico, v. 20, n. 4824, 28/08/2019. Legislação e Tributos, p. E2

 

Lavagem via repatriação

Fernanda Tórtima

Fabricio Dantas

28/08/2019

 

 

Quando se instituiu o Regime Especial de Regularização Cambial e Tributária, por meio da edição 13.254/2016, posteriormente alterada pela Lei 13.428/2017, optou-se por exigir, quanto à origem dos recursos a serem regularizados, que o contribuinte apenas fizesse declaração simples no sentido de que os bens ou direitos de qualquer natureza declarados têm origem em atividade econômica lícita e que as demais informações por ele fornecidas são verídicas (art. 4º, § 1º, inciso IV).

Deixou-se, assim, de exigir que a declaração apresentada à Receita Federal se fizesse acompanhar de documentos que comprovassem a licitude dos bens e valores declarados - licitude aí entendida, de acordo com a ficção jurídica criada pela lei, como proveniência de atividades permitidas ou não proibidas por lei, bem ainda de: i) crimes fiscais, e os de falso que constituam apenas meio para sua realização; ii) crimes cambiais; iii) crime de lavagem de capitais, em que o objeto seja proveniente dos demais crimes anistiáveis, quais sejam, os fiscais e cambiais.

Por outro lado, dispõe a referida norma que será excluído do Rerct o contribuinte que apresentar declarações ou documentos falsos relativos à titularidade e à condição jurídica e ao valor dos recursos declarados (art. 9º c/c Art. 4º, § 8º). Por fim, prevê ainda a Lei do Rerct que, em caso de exclusão do regime, a instauração ou a continuidade de procedimentos investigatórios quanto à origem dos ativos objeto de regularização somente poderá ocorrer se houver evidências documentais não relacionadas à declaração do contribuinte (art. 9º, § 2º).

Dos dispositivos legais acima referidos, extraem-se algumas conclusões: em primeiro lugar, a de que, quando for o caso, caberá à Receita Federal provar a origem ilícita dos bens ou valores objeto da Declaração de Regularização. Em segundo lugar, a de que, em caso de apresentação de documentos falsos ou declarações inverídicas - nesse último caso aí incluída a declaração de licitude da origem dos ativos declarados - a Lei do Rerct autoriza apenas a medida de exclusão do contribuinte do programa.

Por fim, a de que o legislador entendeu que a mera declaração de licitude desses bens ou valores pelo contribuinte, ainda que dê ensejo à sua exclusão do programa, não tem a relevância jurídica que recentemente passou-se a emprestar-lhe, notadamente a partir da imputação do crime de lavagem ao contribuinte que tenha aderido ao Regime de Regularização Cambial em situações em que os órgãos responsáveis pela persecução penal tenham reputado ilícita a origem dos respectivos bens ou valores.

Com efeito, tem-se notícia de que recentemente, no âmbito de certos procedimentos criminais, a conduta de determinados contribuintes no sentido de aderir ao Rerct foi tipificada como crime de lavagem de capitais, em casos em que a origem dos bens e valores declarados via Dercat foi reputada ilícita por órgãos de investigação. Já há notícia, inclusive, de denúncias oferecidas, de decisões condenatórias proferidas e medidas cautelares determinadas, tudo com base na ideia de que a autodenúncia, consistente na simples afirmação de licitude de bens e valores apresentados por meio da adesão ao Rerct, configuraria ato de lavagem.

Essa criminalização não é jurídica nem logicamente aceitável. Em primeiro lugar, porque o mero ato de marcar a opção disponibilizada pelo sistema da Receita, afirmando-se ser lícita a origem dos bens ou valores não atende às exigências do tipo penal da lavagem. Fácil perceber que os elementos do tipo ocultar e dissimular (a origem de bens e valores) pressupõe a prática de condutas sofisticadas, como a realização de fraudes e/ou de complexas operações financeiras.

Em segundo lugar, porque a adesão ao Rerct consiste em autodenúncia às autoridades públicas, ou seja, em movimento inverso ao que se espera de um ato de ocultação ou dissimulação da origem de ativos. Trata-se de declaração que aumenta consideravelmente o nível de informações de que as autoridades dispõem sobre os bens e valores do contribuinte, que as forneceu voluntariamente. E tanto é assim, ou seja, tanto o contribuinte produz prova contra si próprio quando adere ao Regime que, exatamente para preservá-lo, a lei previu que os dados fornecidos à Receita só podem ser utilizados em procedimentos criminais instaurados a partir de evidências que não as constantes da declaração.

A sanção para os casos em que o contribuinte tentou aderir ao regime afirmando falsa ou equivocadamente que seu patrimônio tem origem lícita é, por um lado, a exclusão do Rerct e, por outro, a possibilidade de que os dados fornecidos sejam usados, respeitados os acima referidos limites legais, em procedimentos criminais instaurados para a apuração dos crimes anteriormente praticados.

De fato, uma coisa é usar os dados da Dercat para subsidiar investigação pelos atos praticados antes da adesão ao Rerct, inclusive atos de lavagem pretéritos, outra é considerar a própria adesão ao regime como ato de lavagem. Essa última hipótese fere o direito e a lógica.