O globo, n.31464, 29/09/2019. Mundo, p. 35

 

Volta ao centro 

Marcelo Ninio

29/09/2019

 

 

No fim do ano passado, o conglomerado Wanda, um dos maiores da China, anunciou a construção de um parque temático do comunismo, a ser concluído atempo para a celebração do centenário do Partido Comunista da China, em 2021. Em outro país, a ideia de um colos sodo mundo corporativo com faturamento anual de US$ 30 bilhões bancar um projeto para exaltar o legado comunista seria impensável. Na China, é algo visto com absoluta naturalidade. E muito lucrativo: em 2018, o “turismo vermelho” movimentou 484 milhões de chineses.

O sistema híbrido de controle estatal e livre merca do que transformou o país na segunda economia do mundo e desafia definições convencionais é uma das proezas do PC chinês, que na próxima terça-feira celebrará com pompas militares os 70 anos de sua chegada ao poder, que culminou na fundação da República Popular da China. A capacidade de reinvenção do partido e o fato de ter mantido o controle do país mais populoso do mundo em meio a reviravoltas que fizeram outros regimes comunistas virar pó é uma de suas grandes conquistas. O PC chi nê sé um dos mais longevos no poder,só perdendo para o regime hereditário da Coreia do Norte (71 anos).

Antes do triunfo dos comunistas liderados por Mao Tsétung em 1949, o país estava mergulhado no caos criado após o fim da dinastia Qing em 1911, a última a governara China imperial. O colapso da ordem que durou mais de 2 mil anos já se anunciava antes, com revoltas internas e as Guerras do Ópio deflagradas pelos britânicos, que deram início ao que os chineses chamam de “século de humilhação”. Ter que se submeter aos “bárbaros”, como os estrangeiros eram chamados, foi uma queda atordoante para uma civilização de 4 mil anos que se via no centro do mundo.

CAPITALISMO DE ESTADO

Livres da brutal ocupação japonesa e vitoriosos na guerra civil contra os chineses nacionalistas, os comunistas foram saudado sem 1949 como aforça popular capaz de unificar e reerguer o país, depois de décadas de desordem. Soba tutela autoritária e egocêntrica de Mao, no entanto, a utopia da sociedade sem classes cobrou um preço alto, com milhões de mortos por políticas econômicas ruinosas e campanhas de perseguição política.

— O PC restabeleceu a unidade da China sob um governo e lhe deu força nacional, mas sob o custo de um regime autoritário que matou milhões e implementou uma série de políticas desastrosas sob Mao — disse ao GLOBO Jonathan Fenby, autor de vários livros sobre a China. A China de hojeéaqu ere nasceu após a morte de Ma o em 1976, com apolítica de “reforma e abertura” lançada por Deng Xiaoping. Nas quatro décadas seguintes, a economia cresceu em média quase 10% ao ano, um ritmo sem precedentes, que tirou mais de 800 milhões de pessoas da pobreza. Em 1952, a China era responsável por Nis Grünberg, do Instituto de Estudos Chineses Mercator, de Berlim menos de 3% do PIB mundial, e hoje essa parcela chega a quase 20%.

A velocidade da expansão chinesa num tempo curto espanta, ma sem termos históricos a aproxima de um aposição familiar. Até 1860, a China tinha a maior economia do mundo, quando foi superada pelos EUA e entrou em queda livre. Em 2014, o Fundo Monetário Internacional anunciou que o país voltara à primeira posição, no cálculo da paridade do poder de compra. O sucesso econômico contrariou o consenso do Ocidente de que a receita única para a prosperidade é a democracia liberal. E vitaminou a segurança dos líderes chineses no sistema de partido único e seu modelo de capitalismo de Estado, ou, no vocabulário oficial, “socialismo com características chinesas”. A autoconfiança assentou de vez com acrise global de 2008, que a China atravessou sem arranhões.

A diferença, conta o ex-embaixador do México em Pequim Jorge Guajardo, é que antes eles perguntavam o que a China podia aprender com o mundo. Depois de 2008, a questão passou a ser o que o mundo podia aprender coma China. Para os líderes, a lição que não deve ser jamais esquecida pelos chineses está em sua própria história: só a união e o patriotismo podem restaurara“força e a prosperidade” perdidas a partir das Guerras do Ópio, o trauma fundador da China moderna. Não é uma obstinação inventada pelos comunistas: foi acalentada por gerações de pensadores nos últimos 150 anos e que o PC trata de ensinar à população desde os primeiros anos de escola.

A necessidade de uma “nação forte” define a visão de mundo de Xi Jinping, 66, que assumiu à liderança do PC no fim de 2012 e, em pouco tempo, consolidou-se como o mais poderoso dirigente chinês desde Mao. Sob seu comando, a China assumiu um tom mais assertivo, coma expansão da presença militar marítima em áreas disputadas, a criação de novas instituições multilaterais e o lançamento da Iniciativa do Cinturão e Rota. O megaprojeto de infraestrutura teria, nada menos, a ambição de criar uma “ordem mundial chinesa”, nas palavras do ex-diplomata português Bruno Maçães, autor de um livro sobre a iniciativa.

CONTROLE ABSOLUTO

Filho de um comunista de primeira hora que chegou ao topo da liderança maoísta, caiu em desgraça e depois foi reabilitado, Xi chegou ao poder com pedigree revolucionário, mas também cercado de expectativas de que traria ares mais liberais. Ocorreu o oposto. A repressão oficial aumentou, 1,5 milhão foi punido por corrupção, o espaço para vozes dissonantes encolheu e o governo ampliou o programa de assimilação forçada da minoria muçulmana uigur.

A ONU estima que mais de 1 milhão de uigures estão confinados em centros de detenção. Para Pequim, são “campos de treinamento”, destinados a erradicar o extremismo islâmico. Reformas estruturais aprovadas no ano passado mostram que, para Xi Jinping, a prioridade é fortalecer o monopólio político e ideológico do Partido Comunista, diz um relatório do Instituto de Estudos Chineses Mercator, de Berlim. Nesse modelo, “discussões sobre a separação institucional entre partido e Estado pertencem ao passado”. Não significa que Xi seja contra os negócios, pois as empresas privadas ocupam um lugar importante em sua visão, ponderou ao GLOBO um dos autores do estudo, Nis Grünberg. Mas o partido está acima de tudo. —Xi tenta fundira liderança política absoluta do partido, uma administração eficiente sob o apara todo PC e uma economia híbrida. Não tenho bola de cristal para saber se será bem-sucedido, mas seria tolice prever um colapso.

Os inúmeros eventos para comemo raros 70 anos da R PC foram pensados para projetar aforçado país e reiterar sua determinação em moldara ordem mundial. A festa, porém, acontece num momento de desafios para a liderança comunista, da guerra comercial com os EUA aos protestos em Hong Kong, que mostram a falta de apelo do sistema chinês. Fenby, que em 2014 lançou o livro “A China dominará o século 21?”, hoje vê nas restrições à liberdade de expressão um motivo para responder não à pergunta do título.

— A economia está desacelerando e o enrijecimento do sistema político trava o desenvolvimento e ai novação. Por isso minha resp os taé não: devido adinâmicas internas de poder, a China será um grande ator num mundo multipolar, mas não terá a mesma influência que os EUA tiveram depois de 1945.