O globo, n.31461, 26/09/2019. País, p. 10

 

Presos sem pena 

Aline Ribeiro 

Elenilce Bottari 

Fernanda Pontes 

26/09/2019

 

 

Uma vez por semana, Maria Gorete Bezerra Silva, de 62 anos, deixa sua casa no Morro dos Prazeres, em Santa Teresa, no Rio, por volta das 23h, e segue para o presídio Thiago Teles, em São Gonçalo. Gorete quer chegar cedo para ficar o maior tempo possível com o filho William, de 22 anos, preso há um ano sob a acusação de ter participado de um ataque a uma Unidade de Polícia Pacificadora ao lado de traficantes — a família e os amigos do rapaz negam a participação dele no crime.

Embora a caminhada pela noite seja solitária, Gorete não é a única a seguir o percurso. Para além dos muros da prisão, centenas de milhares de famílias por todo o país passam boa parte de seus dias em jornadas de viagens e em longas filas pelas madrugadas para visitar seus parentes presos.

As humilhações e o preconceito são recorrentes. Para entrar nos presídios, muitos ainda são submetidos às antigas revistas vexatórias, que incluem nudez e agachamento sobre espelhos. Apesar de proibidas para mulheres por um decreto presidencial de 2016, em razão da falta de scanners e equipamentos de raio-X, as revistas íntimas ainda ocorrem em unidades espalhadas pelo Brasil.

— A gente fica naquela ansiedade pra chegar. E na volta é aquela tristeza. Ele fica olhando assim com os olhos cheios d’água, abraça e fala: “Tchau, mãe, isso vai acabar logo”. Toda quarta-feira é essa luta, mas eu não deixo de ir.

Em Bangu, diariamente centenas de famílias formam filas nas primeiras horas da madrugada em busca de senhas para visitar seus parentes. São cerca de 25 mil presos espalhados por mais de 20 unidades prisionais. Do lado de fora, margeando os muros do complexo, dezenas de comércios e serviços são voltados para estes visitantes. Eles vendem desde sucatas (sacolas transparentes com biscoitos, salsichas, farinha, entre outros itens), até vaga em dormitório para que os familiares possam descansar.

— Quando meu marido foi preso pela primeira vez, eu passei por inúmeras dificuldades, além de gastar muito dinheiro com transportes, compras, alimentação. Mas acabei aprendendo muita coisa. Então, quando ele foi preso novamente, mudei para cá, aluguei este espaço e montei um dormitório. Aqui, por R$ 10, ofereço o colchão, o direito a usar o WI-FI e o fogão para que o familiar possa fazer uma comida fresquinha pra o seu parente. E, como sou evangélica, também fazemos um momento de oração para confortar estas famílias que sofrem muito —contou Regina Célia.

HORAS DE ESPERA

Quase no outro extremo do país, a 4.325 km dali, está o Complexo Penitenciário Anísio Jobim (Compaj), localizado na BR-174, em Manaus, capital do Amazonas. Nunca são de descanso os finais de semana de quem visita familiares nos presídios. A vendedora autônoma Vânia, de 35 anos, há seis meses frequenta a unidade.

— A gente chega seis horas da tarde para visitar no outro dia, para poder entrar mais cedo e ter mais tempo com nosso marido. A gente dorme na beira da estrada. Às vezes, a gente faz esse esforço todinho, gasta e eles (os agentes) dizem que a visita está suspensa. A gente tira de onde não tem para chegar lá e não ver nosso marido —reclama.

Para se protegerem do vento, do sol e dos temporais amazônicos, as mulheres dormem em barracas armadas na beira da rodovia, sob o risco de atropelamento. Pela manhã, quando não há ônibus disponível, caminham cerca de três quilômetros numa estrada vicinal em meio à floresta amazônica. Ano passado, uma mulher desapareceu no trajeto.

— Lá é um sofrimento. Tem gente que deixa de comprar comida em casa para estar lá —diz ela.

São vários os riscos para quem visita a cadeia — do contágio de doenças a ser testemunha de rebeliões. A ajudante geral Fátima, de 33 anos, presenciou o último massacre no Compaj enquanto visitava o marido, acusado de latrocínio:

— Tinha visita chorando, pessoas que tinham perdido seus esposos. Teve rajada de bala, spray de pimenta. A gente é prova disso.

Fátima diz que, da última vez que viu o marido, ele estava “fedendo e com coceira”. Apesar de ter presenciado cenas dignas de traumas, afirma não ter medo de voltar à cadeia. Só reclama do que chama de “opressão” e humilhação das revistas íntimas, proibidas por lei desde 2016, mas ainda frequentes:

— Às vezes fazem revista íntima. Já não passa no aparelho? Porque tem de apalpar agente? Olhara nossa unha? Levar pro banheiro? Quando vamos pro banheiro, temos de tirara roupa. A gente agacha três vezes de frente, três de costas. E a mulher ainda coloca a cabeça por baixo pra olhar.

Do outro lado do balcão, mas também afetados pelas condições ruins do sistema, estão 108 mil funcionários. Trabalham em algum presídio estadual ou federal em todo o país. Entre eles, 80 mil agentes penitenciários, mil médicos, 1.200 psicólogos, 1.200 enfermeiros e 700 dentistas. Responsáveis diretos pela segurança dos presos, os agentes trabalham em turnos de 24h/72 horas em que ficam confinados nas unidades. Até a aposentadoria, terão cumprido oito anos de pena em regime fechado.

O agente penitenciário Thiago Dourado Gomes da Silva, de 33 anos, conhece bem os riscos da profissão: carrega no bolso três projéteis que considera símbolos de seu renascimento. São balas de fuzis e metralhadoras usadas por bandidos, em setembro de 2018, durante tentativa de resgate de presos da Penitenciária de Segurança Máxima Doutor Romeu Gonçalves de Abrantes, em João Pessoa, na Paraíba:

—A parede do alojamento começou a furar. Senti o reboco caindo nas minhas costas. Nessas horas, agente só pensa na família.