Correio braziliense, n.20547, 25/08/2019. Mundo, p.12

 

Mundo em remontagem

Silvio Queiroz

25/08/2019

 

 

História » No 80º aniversário do início da 2ª Guerra Mundial, a Europa lembra a devastação do conflito enquanto se debruça sobre os impactos da desmontagem da ordem mundial que emergiu sobre as ruínas e os corpos de 80 milhões de mortos

É em um cenário assombrado pelos fantasmas do passado que a Europa se prepara para relembrar, no próximo domingo, o início da 2ª Guerra Mundial, segundo de uma série de conflitos que marcou a primeira metade do século 20 e moldou a história do continente — e do mundo — até a entrada do terceiro milênio. Com o continente aos solavancos pela instabilidade política e pela emergência de uma extrema-direita que faz eco a algumas das bandeiras nacionalistas e autoritárias que embalaram o prelúdio do conflito, encerrado em 1945 com um saldo da ordem de 80 milhões de mortos, políticos, historiadores e pensadores em geral ponderam sobre os paralelos entre a situação atual e aquela que conduziu, no início dos anos 1930, à ascensão do fascismo italiano e do nazismo alemão — os regimes que precipitaram o mundo na “mãe de todas as batalhas”.

Foi em 1º de setembro de 1939 que a Alemanha de Adolf Hitler invadiu a Polônia, ato que deu início à 2ª Guerra. No país que passou as últimas décadas mergulhado no exercício de entender a marcha de uma ideologia totalitária até a carnificina da guerra que destruiu uma sociedade, a data será marcada por reflexões e protestos. O partido da Esquerda, herdeiro dos remanescentes do regime comunista que governou a metade oriental do país a partir da derrota de 1945, convoca manifestações para marcar o Dia do Não à Guerra.

A mobilização tem mais do que motivações históricas. No aniversário do início do conflito, dois estados da ex-Alemanha Oriental terão eleições, e em ambos a sombra que paira é a do crescimento da Alternativa para a Alemanha (SfD), uma legenda vinculada à extrema-direita populista que vem empolgando a Europa com um discurso que resgata elementos presentes na pregação de Hitler e de seu aliado italiano, Benito Mussolini: a nostalgia de uma “raça pura”, embutida com a rejeição aos imigrantes; o clamor pela segurança, em resposta à alta da criminalidade; a crítica de fundo nacionalista à União Europeia (UE) e a mecanismos democráticos associados com a “inércia” das autoridades para lidar com os problemas sociais, entre eles um desemprego estabilizado em taxas crônicas.

Em artigo para o jornal londrino The Guardian, comentando as eleições de maio para o Parlamento Europeu, que reafirmaram a tendência à fragmentação político-partidária, o estidoso Martin Kettle chamou a atenção para os paralelos entre a situação atual, inclusive no Reino Unido, e o quadro no qual o Partido Nazista chegou ao poder na Alemanha, em 1933. Ele relacionou os ataques de Hitler à democracia clássica a alguns dos desafios presentes, como o aquecimento global e o rompimento britânico com a União Europeia (UE) — criada, fundamentalmente, com o propósito de evitar que o continente voltasse a ser arrastado a um conflito do porte da 2ª Guerra.

“Algumas dessas lições devem ser levadas muito a sério, sob pena de vermos ainda mais enfraquecida a nossa capacidade para confrontar desafios como o Brexit, as desigualdades econômicas e as mudanças climáticas”, alerta o estudioso. Ele lembra que o sistema parlamentarista da Alemanha pré-nazista, massacrada pela hiperinflação decorrente da crise econômica de 1929 e do preço elevado da derrota na 1ª Guerra Mundial (1914-1918), se apoiava no compromisso entre as diferentes correntes políticas para encontrar soluções. “No fim, porém, a disposição do centro-direita para aliar-se com Hitler abriu as portas para o nazismo”, observa.

Democracia em xeque

O alerta se endereça, de imediato, à própria Alemanha, onde o crescimento da AfD coloca para os partidos tradicionais — a democracia-cristã, da chanceler (chefe de governo) Angela Merkel, e a social-democracia, que governa em coalizão — o dilema de compor maiorias parlamentares. A situação é ainda mais aguda na Itália, onde um líder populista de extrema-direita, Matteo Salvini, acaba de provocar a queda do governo no qual era vice-premiê. Embalado pelas pesquisas, que dão dianteira segura a seu partido, ele procura forçar a convocação de eleições antecipadas.

“Como na Alemanha de 1933, o nacionalismo e o protecionismo estão em alta e a democracia é vista como um sistema que fracassou”, refletia, em seu último livro, o líder liberal-democrata britânico Paddy Ashdown, morto em dezembro último. A obra, que reúne ensaios biográficos sobre políticos que se opuseram a Hitler, adverte sobre riscos presentes não apenas no ambiente político europeu. “Os mais aflitos pela ameaça de um colapso econômico anseiam por governos fortes, por soluções simplistas e autoritárias. Notícias falsas (fake news) construídas sobre inverdades convincentes ganham mais peso na opinião pública do que argumentos racionais e fatos comprovados.”

Frases

"Algumas lições devem ser levadas muito a sério, sob pena de vermos ainda mais enfraquecida a nossa capacidade para confrontar desafios como o Brexit, as desigualdades econômicas e as mudanças climáticas”

Martin Kettle, estudioso britânico

"Como na Alemanha de 1933, o nacionalismo e o protecionismo estão em alta e a democracia é vista como um sistema que fracassou”

Paddy Ashdown, líder liberal-democrata

Herança instável e ainda em acomodação

O mundo legado pela 2ª Guerra se demontou em 1990-1991 e ainda passa por rearranjos

União Europeia

A experiência mais bem-sucedida de integração regional é, igualmente, o legado mais basilar para a Europa depois do trauma profundo das duas guerras devastadoras do século 20. Até mesmo a crise atual em torno da saída do Reino Unido — o primeiro país-membro a deixar o bloco — parece afetar a consciência geral de que a existência da UE é o fator fundamental para impedir que o continente volte a mergulhar em um conflito generalizado, como na primeira metade do século passado.

ONU

A Organização das Nações Unidas é, talvez, o elemento mais representativo da ordem global instaurada após a capitulação da Alemanha nazista, em maio de 1945, e do Japão, em agosto. A ONU, fundada nos EUA em outubro do mesmo ano, sucedeu a efêmera Liga das Nações, criada em 1919, sobre os escombros da 1ª Guerra Mundial. Atravessou crises e turbulências, conflitos que se sucedem, mas completou 70 anos como um marco na decisão de que as controvérsias entre países e grupo de países tenham um mecanismo pacífico para a busca de soluções.

Era nuclear

A 2ª Guerra Mundial foi encerrada formalmente, em agosto de 1945, com a rendição do Japão aos Estados Unidos, após a explosão das bombas atômicas em Hiroshima e Nagasaki. Os ataques foram o nascimento de uma nova era na história da humanidade, que passou a conviver com a possibilidade real de aniquilação. Desde então, juntaram-se ao “clube” nuclear União Soviética (hoje, Rússia), Reino Unido, França e China, países reconhecidos oficialmente como potências atômicas. Índia, Paquistão e Coreia do Norte também já demonstraram poder nuclear. Israel, embora se mantenha em silêncio, é citado como detentor de 200 ogivas nucleares.

Guerra Fria

O desfecho da guerra na Europa, em maio de 1945, representou a divisão do continente — e de todo o mundo, por extensão — em áreas de influência dos EUA e da União Soviética (URSS), segundo um mapa desenhado pelos vencedores, Josef Stalin, Franklin Roosevelt e Winston Churchil. Os acordos entre as potências vencedoras não impediram que o mundo vivesse as próximas quatro décadas na disputa por hegemonia entre o bloco capitalista, liderado pelos EUA, e o socialista, comandado pela URSS.

Muro de Berlim

A barreira de concreto que cercou desde 1961 a metade ocidental da antiga capital alemã, restaurada com a reunificação, em 1990, foi por três décadas a imagem do mundo dividido que emergiu da 2ª Guerra. Berlim Ocidental ficou encravada na Alemanha Oriental comunista, resultante da divisão do país entre as potências vencedoras, com os EUA e aliados ocupando a metade ocidental do país. A queda do Muro, em novembro de 1989, é considerada o marco do fim da Guerra Fria e teve como desdobramento o fim do bloco socialista do Leste Europeu e da própria União Soviética.

Pactos militares

A Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) foi formada em 1949 para reunir os aliados ocidentais, sob liderança dos EUA, contra a temida expansão da URSS sobre a Europa Ocidental. Teve como réplica o Pacto de Varsóvia, que reunia os regimes socialistas da Europa Oriental sob comando soviético. A Otan não apenas sobreviveu à Guerra Fria como se expandiu, englobando boa parte dos países que integravam, até 1990-1991, o bloco soviético. Com a dissolução da URSS, em 1991, o Pacto de Varsóvia deixou de existir.

Duas Coreias

A fronteira que permanece entre as Coreias do Norte (comunista) e do Sul (capitalista) é o último marco físico remanescente do mundo dividido que emergiu da 2ª Guerra. A linha que divide os dois países foi traçado em 1953, quando um armistício suspendeu a Guerra da Coreia, iniciada três anos antes e tecnicamente ainda não resolvida. Ao fim de quase sete décadas, a Coreia do Norte, embora isolada internacionalmente, é hoje uma potência nuclear.

Israel e Palestina

O moderno Estado de Israel foi reconhecido pela ONU em maio de 1948, em Assembleia-Geral presidida pelo brasileiro Oswaldo Aranha. O plano de partilha aprovado no ano anterior para o território, até então definido como protetorado britânico, previa a criação também de um Estado palestino, até hoje pendente, depois de três guerras entre árabes e israelenses (1948, 1967 e 1973). Aprisionada por décadas na geopolítica da Guerra Fria, a disputa é ilustrada hoje pelo muro que se para Israel do território palestino da isjordânia.

Iugoslávia

O país criado nos Bálcãs em 1919, para agrupar povos eslavos até então súditos do império Áustro-húngaro, desmembrado ao fim da 1ª Guerra Mundial, saiu da 2ª Guerra como um dos integrantes do bloco socialista, embora se distanciando da URSS. Com a morte do marechal Josip Broz Tito, em 1990, o nacionalismo voltou a emergir e provocou uma série de guerras de secessão. Hoje, o território da antiga Iugoslávia se divide entre Sérvia, Croácia, Eslovênia, Bósnia, Macedônia e Montenegro, sem falar em Kosovo, cuja separação da Sérvia não tem reconhecimento internacional unânime.