Título: Uma das primeiras fichadas
Autor: Mariz, Renata
Fonte: Correio Braziliense, 11/11/2012, Brasil, p. 12

No cenário atual, em que quase 70% da categoria não têm carteira assinada, Lenira Maria de Carvalho já poderia se considerar uma felizarda. Em 1972, parecia um verdadeiro milagre. A alagoana de Porto Calvo, que está prestes a fazer 80 anos, foi uma das primeiras brasileiras a ter o registro de doméstica formalizado, logo depois de criada a lei que reconheceu a atividade como profissão, quando trabalhava na casa de quatro irmãos, estudantes, no Recife. “Eles faziam serviços com dom Hélder (Câmara), eram pessoas muito evoluídas, apesar de serem do interior de Pernambuco”, lembra a alagoana. O entusiasmo foi tanto que Lenira começou a organizar a categoria. “Se eu tinha conseguido, outras podiam conseguir”, lembra. Mas a luta era difícil. Para formar uma associação profissional, era preciso pelo menos 20 trabalhadoras com carteira assinada. “Passamos uns dois anos para encontrar essas mulheres. Se até hoje é difícil assinarem carteira, imagine naquela época.” No fim da década de 1980, ela fundou o Sindicato das Trabalhadoras Domésticas do Recife, do qual é presidente de honra hoje. (RM)

“Há um imaginário social, muito relacionado ao passado escravista, que não concebe esse tipo de atividade como uma profissão que deva ser valorizada e remunerada como as outras” Joaze Bernardino Costa, professor do departamento de Sociologia da UnB

Dois milhões com até meio salário Embora nas principais regiões metropolitanas do país o rendimento médio das empregadas domésticas seja pouco superior a R$ 622, essa quantia garantida por lei como o mínimo que um trabalhador pode receber não alcança um quarto da categoria no Brasil. São quase 2 milhões de pessoas ganhando no máximo R$ 310. Trinta e cinco mil prestam serviços sem receber qualquer remuneração, segundo dados mais recentes do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística referentes a 2011. São geralmente meninas e mulheres que trabalham em troca de comida, moradia e vestuário. Os ganhos modestos, aliados aos problemas que surgem com uma relação tão próxima entre patrões e empregados, fazem da atividade uma das últimas opções entre quem pouco estudou.

Tiana Cristina Costa Silva, 24 anos, doméstica desde os 14, tem dificuldade de enumerar o lado positivo da profissão. “O que tem de bom mesmo é só receber o dinheiro da gente. Mas como eu não estudei muito, tenho que trabalhar assim”, diz a maranhense de Mirinzal. Ela tem cinco anos de estudo, pouco menos que a média nacional, de 6,1. O índice, entretanto, fica muito atrás dos 9,3 anos de escolaridade das trabalhadoras brasileiras exceto as domésticas. Tiana não espera muito mais do que sua mãe obteve na vida, atuando também em casa de família. “A gente trabalhava no Maranhão. Lá é difícil. Ninguém paga o salário. É R$ 200, R$ 300”, conta Francisca Lúbia Costa, 43 anos, com os netos em volta.

Mãe e filha no trabalho doméstico representam uma realidade cada vez menos comum no Brasil. “Romper o ciclo é mais difícil em locais distantes e pobres. Mas, nas cidades grandes, as jovens estão aproveitando outras oportunidades, no comércio, nos serviços, abertas inclusive pelo momento econômico do país”, explica Mario Avelino, presidente do Instituto Doméstica Legal. A falta de reposição de profissionais já aponta, inclusive, um envelhecimento da categoria. Em uma década, a quantidade de empregadas com idade entre 18 e 24 anos caiu de 21% para 11%. Por outro lado, quase 70% das domésticas, hoje, têm mais de 40. Em 2009, essa taxa era de 52%.

O tempo castiga Francisca, que já não encontra forças para trabalhar como antes. “Antes eu arrastava móveis, carregava caixas, fazia de um tudo. Hoje estou mais fraca”, diz a mulher.Em Mirinzal, segundo ela, apesar de trabalhar “desde mocinha”, nunca havia tido a carteira de trabalho assinada. Só em Brasília conseguiu o que considera uma grande conquista. “Eu acho que o salário podia aumentar um pouco. Mas estou conseguindo levar. Depois que vim pela primeira vez, em 2000, já trouxe todo mundo. Marido, filhos e netos”, conta Francisca, que mora de aluguel em uma casa em Ceilândia Norte. Ela e a filha têm o perfil da profissão, já que 93% são mulheres, das quais 61% negras. Por isso, nessa reportagem, a categoria é sempre citada no feminino. (RM)