Correio braziliense, n. 20551, 29/08/2019. Mundo, p. 12

 

Brexit na marra

Rodrigo Craveiro

29/08/2019

 

 

Europa » Rainha Elizabeth II atende ao pedido do primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, e suspende as atividades do Parlamento entre 9 de setembro e 13 de outubro. Especialistas veem manobra para bloquear defensores de acordo para a retirada da União Europeia

O pedido do primeiro-ministro conservador Boris Johnson, acatado pela rainha Elizabeth II, provocou uma tempestade política no Reino Unido. O premiê solicitou a suspensão das atividades do Parlamento entre 9 de setembro e 13 de outubro, praticamente inviabilizando qualquer ação dos deputados que buscam impedir o Brexit sem acordo. O divórcio entre o país e a União Europeia (UE) deve ocorrer em 31 de outubro. O funcionamento da Câmara dos Comuns será retomado a apenas 17 dias do Brexit, com o tradicional discurso da monarca. A decisão de Johnson foi classificada por especialistas como um golpe contra o Parlamento, enquanto os próprios deputados colocaram em xeque o caráter constitucional e democrático da medida.

“É um ultraje constitucional”, disparou o presidente da Câmara dos Comuns, John Bercow. “É óbvio que o propósito desta suspensão agora seria impedir o Parlamento de debater o Brexit e de cumprir com o dever de definir o rumo do país”, acrescentou. Para o líder do Partido Trabalhista (oposição), Jeremy  Corbin, a suspensão do Parlamento é “inaceitável” e “não deveria ocorrer”. “O que o primeiro-ministro está fazendo é esmagar e agarrar nossa democracia para forçar um Brexit sem acordo”, denunciou. O ex-chanceler Philip Hammond disse que a decisão do chefe de governo é “profundamente antidemocrática em tempos de crise nacional como esta”. Manifestantes protestaram no centro de Londres, próximo ao número10 da Downing Street,  residência oficial do premiê.

Boris Johnson informou sua decisão aos parlamentares por meio de uma carta. “Nesta manhã, conversei com Sua Majestade a Rainha para solicitar o fim à atual sessão parlamentar na segunda semana de setembro, antes de começar a segunda sessão deste Parlamento com o discurso da Rainha, em 14 de outubro”, anunciou. “Uma característica central do programa legislativo será a prioridade legislativa número um do governo, se um novo acordo estiver próximo no Conselho Europeu: a introdução de uma Lei de Acordo de Retirada (da UE) e uma manobra para assegurar sua aprovação antes de 31 de outubro”, assegurou na mensagem.

Intimidação

Em entrevista ao Correio, Anthony Glees — diretor do Centro para Estudos de Segurança e Inteligência da Universidade de Buckingham — admitiu que a manobra de Johnson representa um “golpe” contra o Parlamento. “Creio que ele foi forçado a tomar tal decisão depois de uma declaração assinada por 160 parlamentares de Londres, na qual afirmavam que submeteriam um Brexit sem acordo à votação na Câmara dos Comuns. Além disso, existe o temor de que 16% dos eleitores britânicos votem pelo Partido Brexit, uma hipótese que torna uma eleição geral muito perigosa, a menos que Johnson consiga sair da UE até 31 de outubro”, comentou.

Glees acredita que Johnson está intimidando os parlamentares do Tory (Partido Conservador) a forçarem um Brexit. “Não há dúvida de que o que ele fez é profundamente ofensivo para aqueles que colocam o conceito da soberania parlamentar acima do populismo.”

O especialista de Buckingham lembra que Johnson aguardou 20 anos para se tornar primeiro-ministro e tem a exata ciência de que, caso o Reino Unido abandone a UE sem um acordo, o país sofrerá “grave desordem”. “As finanças públicas serão um desastre; os setores agroalimentar, pesqueiro e industrial ficarão paralisados, com mais de 1 milhão de desempregados; a libra esterlina entrará em queda. Muito melhor para Johnson ser o premiê que forjou um Brexit com acordo e manteve 50% do comércio com o bloco europeu do que ver a nação degenerar no caos e na insolvência”, sugere Glees. Apesar de aceitar como “possível e altamente provável” um Brexit sem acordo, o estudioso tem esperanças de que isso não ocorra.

Diretor do Centro para Política e Governo Britânicos e do Departamento de História e Política do King’s College London, Andrew Blick adverte que “a manobra do governo destina-se a reforçar o controle sobre o Parlamento, que não está totalmente alinhado à abordagem do premiê, e sobre a UE, ao tornar a possibilidade de um Brexit sem acordo mais realista, na esperança de obter concessões”. Ele vê o perigo de Johnson ter alienado o próprio partido, com tal movimento incomum. Nas fileiras do Partido Nacional Escocês, conservadores já esboçam descontentamento sobre o curso da ação tomada pelo primeiro-ministro.

Pontos de vista

Por Andrew Blick

Escolha forçada

“Eu suspeito que o premiê Boris Johnson espera ser capaz de obter um novo acordo com o Parlamento para abandonar a União Europeia no curto espaço de tempo, entre 15 e 31 de outubro. Na realidade, ele pode estar forçando uma escolha entre um Brexit sem acordo e um Brexit com acordo, se é que será capaz de obtê-lo. Na impossibilidade de conseguir um acordo, Johnson  pode estar agindo a fim de impedir os parlamentares de bloquearem o Brexit ou de buscarem outro adiamento.”

Diretor do Centro para Política e Governo Britânicos e do Departamento de História e Política do King’s College London

Por Anthony Glees

Golpe à soberania

“O Reino Unido não tem uma Constituição escrita. Como a rainha concordou com a suspensão do Parlamento, a decisão de Johnson pode estar alinhada à prática constitucional. É um claro golpe contra o princípio da soberania parlamentar. O ex-chanceler Philp Hammond classificou a manobra de ‘profundamente antidemocrática’, e John McDonnell, vice-líder trabalhista, a chamou de ‘um golpe muito britânico’.”

Diretor do Centro para Estudos de Segurança e Inteligência da Universidade de Buckingham