O globo, n.31459, 24/09/2019. País, p. 07

 

Dor silenciosa 

As doenças na prisão matam mais do que a violência 

Elenilce Bottari 

Fernanda Pontes 

Gabriel Carriello 

24/09/2019

 

 

A maior incidência de causa mortis da população jovem no planeta é a violência. Mas quando este mesmo jovem é preso e entregue ao sistema penitenciário no Brasil, a realidade é outra: a maioria morre por doenças tratáveis. As enfermidades representaram 61% das 1.119 mortes registradas no país no primeiro semestre de 2017, último período com registros nacionais. No total, 24.633 presos foram diagnosticados com doenças transmitidas ou agravadas nas celas: 7.211 com HIV, 6.591 com tuberculose, 4.946 com sífilis, 2.683 com hepatite e 3.232 diagnosticados com outras doenças transmissíveis. No caso da tuberculose, a incidência na cadeia é 4.500% maior do que fora dela. De cada 100 mil presos, 900 têm a doença. No país, a taxa é de 20 por 100 mil habitantes.

— A tuberculose acaba sendo uma segunda pena para grande parte dos presos que adoecem na prisão. Acaba sendo para alguns uma pena de morte —avalia a médica Alexandra Sánchez, da Fiocruz, coordenadora da pesquisa sobre mais de 460 óbitos em presídios no Estado do Rio.

A tuberculose foi também a pena capital para o ex-marido de Flávia Torres. Preso por tráfico de drogas, ele não ficou nem um ano preso. Aos 28 anos, morreu vítima de tuberculose.

— A gente só via ele perdendo quilos —disse Flávia, que soube da morte do exmarido por familiares. — O pai do meu filho pegou essa doença lá dentro, em Bangu 4, em 2016. O lugar é um horror, cheio de mofo e um monte gente na mesma cela. As pessoas lá são tratadas que nem bicho.

Para a arquiteta Suzann Cordeiro, especialista em arquitetura prisional, as prisões brasileiras são verdadeiros hospedeiros de doenças, uma vez que não são projetadas para funcionarem com luz e ventilação natural, e são feitas sem se levar em conta os aspetos climáticos de suas regiões:

— Sem ventilação adequada, sem o isolamento de doentes adequado, a possibilidade de muitos se contaminarem e contraírem a doença é altíssima.

Subcoordenador de Defesa Criminal da Defensoria Pública, o defensor Ricardo André Souza, aponta a carência de profissionais de saúde como um dos grandes gargalos do sistema penitenciário:

—A carência que você tem já na saúde pública geral é potencializada quando se trata do sistema carcerário.

PRESÍDIO É CONDENADO

Para além das doenças infectocontagiosas e respiratórias, um estudo sobre saúde mental de internos do sistema prisional do Rio, feito a partir de 1577 entrevistas, revelou que 71,2% dos homens e 82,4% das mulheres apresentam sinais de depressão.

— Quando a gente olha a incidência desses agravos que presos dizem ter ou sentir e compara com a população liberta, esses números são surpreendentes — afirma a pesquisadora da Fundação Oswaldo Cruz Patrícia Constantino.

Em meio ao colapso do sistema prisional do país, provocado pela superlotação e pela falta de investimentos, o governo brasileiro recebeu notificação da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) sobre a necessidade de implementação de uma série de medidas na Penitenciária Evaristo de Moraes, em Benfica, para melhoria da saúde e dignidade dos presos. Até o dia 24 de julho passado, foram registradas 13 mortes na unidade.

Em dez anos, de 2008 a 2018 foram 142. A comissão que requer ao país, entre outras iniciativas, a adoção das providências necessárias à proteção à vida, à integridade pessoal e à saúde, além de ações imediatas de redução da superlotação que está em 252%. Este é o segundo presídio do estado condenado pela Corte Interamericana. Em dezembro passado, a entidade já havia proibido novos presos no Instituto Penal Plácido Sá Carvalho, no Complexo de Gericinó, em Bangu, onde 70 presos morreram em três anos.

A denúncia à CIDH foi encaminhada pela Defensoria Pública do Rio (DPRJ). Segundo a instituição, a penitenciária tinha 3.775 detentos para 1.497 vagas distribuídas em 39 celas com situação sanitária “preocupante”. Além de insalubridade e infiltrações, a defensoria identificou problemas como falta de ventilação e de camas e iluminação, fornecimento de água interrompido por cerca de quatro vezes ao dia e por aproximadamente meia hora, insuficiência de mecanismos que assegurem a qualidade da água para consumo humano e alimentação irregular e inadequada. Foi identificada ainda proliferação de roedores e insetos, além de “calor sufocante”.

— Em 2010, relatório da II Caravana Nacional de Direitos Humanos já demonstrava que unidade era um dos piores (presídios) do mundo. De lá pra cá, o número de internos aumentou exponencialmente e, para nosso espanto, o que era consenso entre as instituições, o fechamento da unidade, caiu no esquecimento — destacou o coordenador de Defesa Criminal da DPRJ, Emanuel Queiroz.

Embora a precariedade da saúde dos presos seja um problema nacional, no Rio a situação é mais grave: 83% das mortes são por doenças consideradas tratáveis. O levantamento é do Grupo de Pesquisa Saúde nas Prisões da Escola Nacional de Saúde Pública da Fiocruz, com base nos 546 óbitos registrados em presídios do Rio entre 2016 e 2017.

O secretário de Administração Penitenciária do Rio, Alexandre Azevedo, informou que o atual governo vem trabalhando para regularizar o problema não só da superlotação, como também da falta de profissionais de saúde. Segundo o secretário, o governo está em negociações com municípios para que assinem o Programa Nacional de Atenção Integral à Saúde das Pessoas Privadas de Liberdade para Rio. O programa prevê o atendimento da população carcerária pelo Sistema Único de Saúde.

— Está sendo costurado com o secretário de Saúde do estado termos um hospital penitenciário para várias intervenções — diz o secretário Alexandre Azevedo.