O globo, n.31459, 24/09/2019. Rio, p. 08

 

Governador culpa usuários de drogas 

Witzel avisa que política de segurança não vai mudar 

Lucas Altino

Selma Schmidt 

24/09/2019

 

 

Não houve pedido de desculpas à família, anúncio de revisão da política de segurança do estado ou promessa de maior rigor no controle da atuação de policiais. Ontem, ao quebrar o silêncio sobre a morte de Ágatha Vitória Sales Félix, de 8 anos, o governador Wilson Witzel responsabilizou “usuários de maconha e cocaína” pela morte da menina, atingida por um tiro nas costas na noite de última sexta feira, no Complexo do Alemão. Durante uma entrevista coletiva, ele lembrou que é pai e chegou a se emocionar, mas afirmou que o Rio está no caminho certo e que a tragédia foi “um fato isolado”. “Não podemos agora, porque tem um acidente de carro na rua, tirar todos os carros da rua”, argumentou.

Moradores do Alemão, inclusive o motorista da Kombi na qual Ágatha viajava quando foi baleada, acusam um PM de ter feito o disparo. Witzel frisou que “não tem bandido de estimação” e garantiu que o culpado, seja quem for, receberá a punição merecida quando a Delegacia de Homicídios concluir o inquérito sobre o caso. Mas o governador se antecipou ao fim da investigação e apontou quem, na sua opinião, causou a tragédia:

— É bom você, que não é dependente químico mas usa maconha e cocaína recreativamente, faça uma reflexão, porque você é diretamente responsável pela morte da menina Ágatha. Você, que usa maconha e cheira cocaína, dá dinheiro para alimentar esses genocidas que usam as comunidades como escudos humanos. Quem está no crime organizado éter ror ista e está apertando o gatilho. Eque musa droga ajuda a apertar esse gatilho.

Witzel, que foi criticado no mês passado por ter desembarcado de um helicóptero na Ponte Rio-Niterói pouco depois de a PM matar um homem que havia sequestrado um ônibus, explicou por que demorou ase manifestar sobre a morte de Ágatha:

— O fato que ocorreu na Ponte estava acontecendo, e a polícia agiu de forma adequada. No caso da Ágatha, eu não estava no momento, recebia notícia de forma indireta. E da mesma forma que não me manifestei no caso dos tiros envolvendo o Exército (uma guarnição deu mais de 80 tiros nocar rode uma família em Guadalupe, provocando a morte do músico Evaldo Rosa e do catador Luciano Macedo, que tentou socorrê-lo, em abril), quando falei que aguardaria para verificar os elementos colhidos pela Justiça Militar, agora eu aguardei, conversei, fiz várias ligações durante o fim de semana para os secretários Marcus Vinicius (da Polícia Civil) e Rogério Figueredo (da PM) até que pudesse formar um juízo de convicção.

Durante a entrevista, o governador criticou várias vezes “a oposição”, sem especificar partidos, por fazer suposto uso político da morte de Ágatha:

— É indecente usar um caixão como palanque. Preferi, então, reunir o governo e dar uma explicação do estado.

O delegado Marcus Vinicius e o coronel Rogério Figueredo participaram da coletiva, assim como Major Fabiana, secretária estadual de Vitimização e Amparo à Pessoa com Deficiência; o deputado federal Felipe Franchischini (PSLPR), presidente da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara, e o vice-governador, Cláudio Castro. Todos defenderam a política de segurança e, assim como Witzel, destacaram que não havia operação policial no momento em que Ágatha foi baleada.

CRÍTICAS ÀS DECLARAÇÕES

As declarações de Witzel receberam críticas de especialistas em segurança pública. José Vicente da Silva Filho, ex-secretário nacional de Segurança, disse que faltou humildade ao governador, que deveria fazer uma “autocrítica”. O diretor presidente do Fórum Brasileiro de Segurança, Renato Sérgio de Lima, foi além:

— Caberia ao governador cumprir com sua responsabilidade de garantir que a polícia combata o crime com as armas da Constituição, e não com as mesmas ferramentas que milícias e traficantes usam contra os moradores das comunidades.

Para o doutor em Sociologia Michel Misse, a política de segurança implantada no Rio pode ser resumida na expressão “liberou geral”, numa referência às 1.249 mortes decorrentes de ações policiais registradas este ano.

—Uma polícia que atira primeiro é absolutamente incompetente em qualquer lugar do mundo. Em relação à morte da Ágatha, ela foi tão incompetente que atirou num motociclista porque ele não quis parar. Essa é a justificativa para usar uma arma? — questionou Misse.

“É bom você, que não é dependente químico mas usa maconha e cocaína recreativamente, faça uma reflexão, porque você é diretamente responsável pela morte da menina Ágatha”

Wilson Witzel, governador

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Procuradoria defende investigação pelo MP do Rio 

Leandro Prazeres 

24/09/2019

 

 

O Ministério Público Federal (MPF) defende que a investigação sobre o assassinato de Ágatha Vitória Sales Félix deve ser conduzida pelo Ministério Público do estado, e não por forças policiais. O pedido foi feito pela Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, do MPF, e encaminhado ao Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) e à Procuradoria Geral de Justiça do Rio.

O órgão federal cita uma decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos, de 12 de maio de 2017, que condenou o Brasil pela violação do direito às garantias judiciais de independência e imparcialidade de investigação nas chacinas ocorridas na Favela Nova Brasília, no Complexo do Alemão, entre 1994 e 1995. A Corte apontou falhas e demora na investigação e punição dos responsáveis pelas execuções de 26 pessoas em intervenções realizadas pela Polícia Civil do Rio na favela.

A sentença determina que, em casos de supostas mortes, tortura ou violência sexual decorrentes de intervenção policial e nas quais haja a possibilidade de responsabilidade de agentes de segurança, a investigação seja conduzida, desde o início, por autoridade judicial ou pelo Ministério Público.

A Procuradoria ressalta que entende que o assassinato deve ser investigado “diretamente pelo Ministério Público, com o apoio de equipe própria ou, se necessário, assistido por equipes investigativas, técnicas e administrativas necessariamente estranhas às forças policiais envolvidas no evento, ainda que de outro ente federativo”.

DENÚNCIA NA ONU

Ontem, a alta comissária da ONU para os Direitos Humanos, a ex-presidente do Chile Michelle Bachelet, recebeu uma carta assinada pela ONG Justiça Global e por entidades que atuam em favelas no Rio responsabilizando o governador do Rio, Wilson Witzel. O texto afirma que a morte da menina é mais uma tragédia “diretamente relacionada à bárbara política de segurança pública conduzida pelo governador do Rio de Janeiro”.

A Anistia Internacional Brasil também criticou a política de segurança pública fluminense. Em nota, ressaltou que “a responsabilidade do governador é prevenir e combater a violência com inteligência e levando em consideração que todas as vidas importam, e não deixar um rastro de vítimas que deveriam ser protegidas pelo Estado”.