O globo, n.31458, 23/09/2019. País, p. 04

 

Os testes do novo PGR

Vinicius Sassine 

23/09/2019

 

 

Augusto Aras vai reavaliar ações de antecessora contra pautas bolsonaristas

O próximo procurador-geral da República, Augusto Aras, vai reavaliar ações e manifestações apresentadas por sua antecessora, Raquel Dodge, contra pautas caras ao presidente Jair Bolsonaro e poderá mudar o entendimento expresso por ela junto ao Supremo Tribunal Federal (STF). Aras não terá poder para retirar as ações já remetidas à Corte, mas existe a possibilidade legal de que apresente novos entendimentos no curso dos processos, principalmente ao fim da instrução dos autos, segundo fontes da Procuradoria-Geral da República (PGR) ouvidas pelo GLOBO. Essa, inclusive, é uma preocupação da equipe que assessorou Dodge.

Nos últimos seis dias de seu mandato, a procuradora-geral disparou “flechadas” contra iniciativas do governo e ideias alimentadas pelo bolsonarismo, entre elas a chamada “Escola Sem Partido”, a ampliação do porte e da posse de armas, a redução de assentos em conselhos com poder de decisão e a vedação de novas demarcações de terras indígenas. As iniciativas geraram uma rejeição imediata entre procuradores conservadores convidados por Aras para integrar seu gabinete na PGR.

O termo “flechada” foi cunhado na PGR pelo então procurador-geral Rodrigo Janot, que, na reta final de seu segundo mandato, usou o termo para dar o tom da Operação Lava-Jato naquele momento, no segundo semestre de 2017. Janot afirmou, na ocasião, que “enquanto houver bambu, lá vai flecha”, em referência a ações que foram movidas nos últimos dois meses de seu mandato. Com Dodge, a Lava-Jato ficou em segundo plano. A procuradora-geral usou os últimos dias de seu primeiro e único mandato para dar “flechadas” em iniciativas do governo e de bolsonaristas que atentam contra os direitos humanos e o meio ambiente, na visão de Dodge.

ORIENTAÇÃO DIFERENTE

O futuro procurador-geral já manifestou reservadamente a intenção de reexaminar os atos de sua antecessora protocolados no STF. Ele cogita, inclusive, mudanças de entendimentos a serem apresentadas à Corte.

Aras conquistará a cadeira de procurador-geral se for aprovado pelo Senado. A sabatina está agendada para a próxima quarta-feira. Os senadores não têm manifestado resistência ao seu nome. Ele foi indicado por Bolsonaro fora da lista tríplice votada pela categoria e com pedidos do presidente para que não tenha uma postura “xiita” em assuntos de meio ambiente e direitos humanos.

Dodge tentou a recondução, fora da lista tríplice, mas acabou preterida pelo presidente. Ainda com a caneta na mão, a procuradorageral assinou quatro arguições de descumprimento de preceito fundamental (ADPF) contra iniciativas e ideias do governo.

Em uma delas, pediu uma medida cautelar para suspender qualquer ato do poder público que censure os professores nas escolas. A procuradora-geral enxergou no “Escola Sem Partido” um movimento que atenta contra a Constituição e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação. A ADPF foi protocolada no dia 17, o último do mandato de Dodge. O relator é o decano do STF, ministro Celso de Mello. Ele se aposenta em novembro de 2020. Até lá, pode querer deixar a questão decidida, o que levará a uma nova manifestação da PGR.

No dia 16, duas ADPFs protocoladas por Dodge no STF contestaram a redução da participação popular e dos assentos no Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) e no Conselho Nacional do Meio Ambiente( Co nama ). Quatro dias antes, também por meio de ADPF, ela pediu a suspensão imediata da portaria do ministro da Justiça, Sergio Moro, que permite deportações sumárias de imigrantes.

As “flechadas” de Dodge incluem também uma alteração substancial em um critério usado para demarcação de terras indígenas. Bolsonaro já disse que não demarcará nenhuma nova terra indígena em seu governo.

Em um parecer enviado no último dia 12, no âmbito de um recurso no STF com repercussão geral, a procuradora-geral defendeu que demarcações não dependem de um marco temporal. Esse marco é o ano de promulgação da Constituição, 1988. Como critério para demarcar, é levado em conta se a população indígena estava na terra naquele ano, ou se há provas de expulsões. Para Dodge, os direitos dos indígenas sobre as terras ocupadas são originários. Assim, um marco temporal seria dispensável. Fontes ouvidas pelo GLOBO dizem que, caso o STF sacramente esse entendimento, haverá reflexo em praticamente todas as novas demarcações de áreas indígenas.

PORTE E POSSE DE ARMAS

A procuradora-geral também se manifestou pela inconstitucionalidade dos decretos de Bolsonaro que ampliam o porte e a posse de armas, numa ação movida pelo PSOL no STF. Os decretos se chocam com o Estatuto do Desarmamento, segundo Dodge. A manifestação foi feita no último dia de seu mandato.

A lista de “flechadas” inclui ainda quatro pedidos, no Superior Tribunal de Justiça (STJ), de federalização de investigações nos estados, os chamados incidentes de deslocamento de competência (IDCs).

Dodge pediu a entrada da Polícia Federal nos casos da chacina por policiais na Favela Nova Brasília, no Rio; de execuções no campo em Rondônia, com suposta participação de lideranças políticas; de tortura no sistema de internação de adolescentes infratores no Espírito Santo; e da execução da vereadora do PSOL do Rio Marielle Franco e de seu motorista, Anderson Gomes. O pedido de federalização do caso de Marielle foi anunciado por Dodge numa entrevista coletiva a poucas horas do fim do mandato.