O Estado de São Paulo, n. 46100, 05/01/2020. Espaço aberto, p. A2

 

Melhor governança, mais resultados na educação

Priscila Cruz

Guilherme Lacerda

Lucas Fernandes Hoogerbrugge

05/01/2020

 

 

Imagine duas escolas públicas de ensino fundamental vizinhas, uma municipal e outra estadual. Ambas atendem crianças do mesmo bairro, têm salas de aula ociosas e, vistas de fora, parecem muito semelhantes. Por outro lado, cada uma tem um processo para formação de professores, alunos que chegam em diferentes tipos de transportes, mesmo sendo vizinhos, e a merenda também é distinta. Nesse cenário, há completa falta de racionalização de recursos, perda de escala e ineficiências sobrepostas, que poderiam ser minimizadas caso houvesse articulação e colaboração entre a gestão estadual e a municipal.

Essa desarticulação tem origem no formato do pacto federativo vigente num país que se divide em 5.570 municípios, 26 Estados e o Distrito Federal, além da própria União. Cada um desses entes tem autonomia administrativa, formula e gerencia suas políticas educacionais de forma isolada.

Dados as características demográficas, a heterogeneidade regional e o modelo federativo brasileiro, nossos legisladores dividiram as responsabilidades pela oferta da educação pública da seguinte forma: a educação infantil é promovida pelos municípios, o ensino médio pelos Estados e o ensino superior é majoritariamente ofertado pela União. Já na etapa do ensino fundamental, a oferta é compartilhada e as divisões de responsabilidades não são claras.

Como não há no Brasil um Sistema Nacional de Educação que organize a governança no setor, a distribuição das matrículas entre redes estaduais e municipais tornou-se muito heterogênea, com pouco ou nenhum alinhamento gerencial e pedagógico, o que provoca uma série de distorções e reforça as desigualdades de oferta educacional e os resultados. Além das consequências negativas na aprendizagem dos alunos, o próprio Estado desperdiça recursos materiais e humanos que poderiam ser mais bem investidos nas escolas.

O bem-sucedido regime de colaboração do Estado do Ceará, com enorme repercussão nos resultados de aprendizagem de seus estudantes, só foi possível porque o processo de formulação e de gestão da política educacional é pactuado entre o Estado e seus municípios. Tanto as ações estaduais de apoio técnico e pedagógico às secretarias municipais de Educação quanto o repasse do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) aos municípios que melhoram a aprendizagem de suas crianças são viáveis somente em um contexto de cooperação entre os entes federativos. O regime de colaboração exige convergência de objetivos, governança compartilhada e colaboração no processo decisório.

Entretanto, ainda que a cooperação entre Estado e municípios no Ceará tenha decorrido de maneira articulada, a falta de um sistema nacional de educação já fez o Estado ter dificuldades com programas criados pelo governo federal, como o Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa (Pnaic). Inspirada justamente no caso cearense, a iniciativa foi implementada pelo Ministério da Educação sem levar em consideração as ações já promovidas nas redes de ensino de Estados e municípios, o que resultou em retrabalho e desarticulação da política educacional. Ironicamente, Estados como o Ceará, que desenvolviam ações em colaboração com os municípios, foram prejudicados pelo programa nacional, pois, além da duplicidade de ações e da desarmonia entre os currículos, materiais e metodologias pedagógicas, o arranjo organizacional para a implementação da política era totalmente diferente. Assim, o Estado foi forçado a modificar uma estrutura que já funcionava, aumentando os custos do programa.

Para além das dificuldades gerenciais e pedagógicas, a ausência de um sistema nacional de educação impacta diretamente a sustentabilidade fiscal dos investimentos na educação. A falta de uma instância de pactuação entre União, Estados e municípios na área faz não só todos reformularem e implementarem políticas educacionais simultaneamente e de forma descoordenada, mas também não haver acordo sobre o que é prioridade e a melhor forma de alocar recursos. Isto é, embora seja do interesse de todo o País uma trajetória escolar para crianças e jovens sem percalços e com qualidade, cada um de nossos gestores está falando apenas com os seus.

Uma boa notícia é que o assunto está sendo pautado no Congresso Nacional e deve se tornar mais importante conforme a agenda de financiamento da educação avança. O presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ), mencionou a criação de um sistema de governança na educação como uma das quatro áreas que considera prioritárias para o desenvolvimento do País.

Entretanto, ainda que exista algum consenso acerca da necessidade de criar o sistema, o desafio atual consiste em conceber uma lei que estabeleça mecanismos de governança efetivos, garantindo que a autonomia dos entes federativos seja exercida de forma coordenada, evitando engessamentos ou burocracias desnecessárias, como é hoje. Não é trivial desenhar um sistema que respeite a autonomia dos entes federados, promova a equidade nos sistemas de ensino e garanta a qualidade do investimento na educação. Por isso, o foco há de estar em definir com clareza a repartição de responsabilidades entre os três níveis da Federação e institucionalizar espaços deliberativos para a articulação e a ação conjunta entre os entes na formulação e implementação de políticas educacionais.

Isto posto, é urgente que os parlamentares mergulhem na discussão da melhoria da governança da educação brasileira. Além de ouvir os especialistas no assunto, é preciso estudar os casos bem-sucedidos de articulação do pacto federativo, dentro e fora da educação. Afinal, com um sistema nacional de educação bem estruturado teremos as bases para chegar mais rápido a um cenário de mais qualidade e equidade.