Correio braziliense, n.20554, 01/09/2019. Cidades, p.19

 

O PAVOR DE ANDAR SOZINHA

Jéssica Eufrásio

Rayssa Brito

 

 

Pesquisa da Universidade de Brasília (UnB) revela que 78% das mulheres entrevistadas têm receio de se deslocar a pé pelas ruas de Brasília. Há um modelo urbano e social que perpetua o sentimento de insegurança nas cidades

O medo e a sensação de estar exposta, especialmente na rua, são sentimentos constantes na vida das mulheres. No Plano Piloto não é diferente. Um estudo, publicado em junho de 2019 por uma pesquisadora da Universidade de Brasília (UnB), revela que a cidade oferece uma “realidade hostil” para mulheres que precisam se deslocar a pé, independentemente do horário. A pesquisa, que faz um comparativo entre Lisboa e Brasília, leva em conta a opinião de 516 entrevistadas (233 na capital federal), que responderam a um questionário disponibilizado na internet durante dois meses.

O levantamento considerou três fatores: infraestrutura urbana, segurança pública e questões socioculturais. Para classificar as duas cidades, a pesquisa apresenta um índice de caminhabilidade dividido em cinco níveis: ausência de medo; medo leve; medo moderado; medo intenso; e medo extremo (pânico). A colocação de Brasília no terceiro nível deixa implícito um cenário em que mulheres sentem a necessidade de desenvolver estratégias para exercer o direito de se locomover a pé pelos espaços públicos, por exemplo, evitar certos tipos de roupas para não ser ver sujeita a situações de assédio na rua.

Autora da pesquisa — intitulada Mulher, uma força que caminha: um estudo de caso em Brasília e Lisboa —, a doutora em transportes pela UnB Adriana Souza (leia Cinco perguntas para) explica que, de um modo geral, os municípios foram planejados e construídos de modo a perpetuar o sentimento de insegurança entre as mulheres. “A mulher não é vulnerável. Ela se torna vulnerável por uma série de fatores socioculturais que não a levam em conta durante o desenvolvimento da cidade”, avalia.

Adriana acrescenta que elas são constantemente coagidas e perseguidas quando andam pelas cidades em países diversos. Em relação ao caso da advogada Letícia Curado e da auxiliar de cozinha Genir Pereira, assassinadas após acreditarem que o cozinheiro Marinésio dos Santos Olinto era motorista de transporte pirata, a pesquisadora afirma que o problema não envolve apenas a falta de um serviço de transporte público eficiente. “É o fato de o homem ver a mulher como alguém inferior a ele e que ele pode controlar. Somos quase como corpos transeuntes que se deslocam pela cidade e não têm identidade”, critica.

Deslocamento

Quem passou por isso na pele tem dificuldades para esquecer a experiência. Estudante universitária, Fernanda Gyullia Araújo, 21 anos, relata que se sentiu constrangida quando foi assediada na rua. O autor dos insultos tinha o hábito de xingar a jovem sempre que ela passava pela mesma parada de ônibus. O assediador dizia palavras como “gostosa” e fazia referências sexuais quando ela passava. “Ele fazia questão de gritar para que todos ouvissem. E eu não conseguia olhar para trás, por vergonha. As pessoas me olhavam, mas ninguém fazia nada. A única reação que uma pessoa da parada teve foi dizer ‘Nossa, o que é isso, né?’”, conta Fernanda Gyullia.

Em Brasília, 78% das mulheres entrevistadas para a pesquisa de Adriana Sousa disseram sentir medo de se deslocar a pé pela cidade (leia Levantamento). Em Lisboa, esse índice não chegou a 27% de dia. À noite, a taxa sobe para 82% na capital portuguesa. Em relação aos maiores medos delas, nas duas cidades, a falta de iluminação foi o item de maior destaque no universo da infraestrutura. Em relação à segurança pública, o medo de ser estuprada ficou em primeiro lugar. Quando questionadas sobre os itens de maior peso para mudar de caminho, a presença de homens desconhecidos ficou em primeiro lugar em Brasília e em Portugal.

O fato de estudar durante a noite representa preocupação constante para Emanuelle Feitosa, 21. A universitária conta que não se sente protegida e lembra-se de ocasiões em que precisou correr bastante para conseguir pegar o ônibus no ponto, após a aula. “Peguei o coletivo das 23h e cheguei em casa meia-noite”, relata. Em uma dessas ocasiões, a jovem chegou a ser assediada na parada e no transporte. “Na parada, um homem falou obscenidades para mim. Não uso mais esse ponto. Um cara também passou a mão em mim dentro do ônibus. Eu o agredi. E o motorista não fez nada”, completa Emanuelle.

Insegurança

Entre as participantes do estudo publicado em junho, 53% das brasilienses entrevistadas afirmaram que usam transporte público para ir ao trabalho. Quando questionadas sobre as principais dificuldades encontradas no caminho até o ponto de ônibus ou à estação de metrô, 40,32% afirmaram que a segurança do trajeto é o item de maior importância. A porcentagem de mulheres que usam o transporte público em Brasília ao menos raramente é de 76,4%.

Estudante de um curso técnico, Gardênia Artemiza, 23, conta que voltava das aulas, por volta das 18h30, quando começou a ser seguida no caminho de casa. “O cara me perseguiu mesmo. Precisei correr até chegar em casa. Só tinha nós dois, e ele começou a correr atrás de mim. Foi bizarro”, recorda-se. Em relação ao serviço de transporte público, a moradora do Novo Gama (GO) relata que prefere não se arriscar com serviços piratas. No entanto, a escolha envolve consequências. “Prefiro faltar ao trabalho e ficar com falta na folha, do que pegar transporte irregular”, opina.

Frases

"É preciso devolver a autonomia para que as mulheres usufruam do pleno direito de ir e vir. Criar mecanismos de enfrentamento dessa cultura violenta”

"Por se sentirem limitadas e oprimidas, as mulheres criam estratégias diárias para se deslocarem com segurança, principalmente, e conforto”