O globo, n.31457, 22/09/2019. Mundo, p. 30

 

Controle de danos

Jussara Soares

22/09/2019

 

 

O presidente Jair Bolsonaro embarca amanhã para NovaYork,ondef ará, na terça feira, às9h,o seu primeiro discurso na Assembleia Geral das Nações Unidas sob pressão par atentar revertera imagem negativa de seu governo no exterior. Após protagonizar polêmicas com outros líderes mundiais e conquistara desconfiança internacional, Bolso naropr omete um pronunciamento“conciliador” em que não vai “apontar o dedo” para nenhum chefe de Estado ou governo. Apesar disso, na avaliação de especialistas em relações exteriores e interlocutores da diplomacia brasileira, a estreia de Bolsonaro na ONU não será suficiente para reparar os danos de declarações anteriores que ameaçam acordos comerciais e investimentos. E deverá, apontam, ser voltada para o público interno com intuito de se reforçar diante de seus apoiadores.

Além da política ambiental de Bolsonaro — que inclui a negação de desmatamento, críticas a ONGs e defesa da exploração econômica de terras indígenas e de áreas de preservação —pesam contra o presidente suas declarações sobre direitos humanos, a defesa da ditadura militar e até mesmo suas reações intempestivas às críticas. Recentemente, o presidente francês, Emannuel Macron, a chanceler alemã, Angela Merkel, e a comissária da ONU para Direitos Humanos, Michelle Bachelet, foram alvos de ataques de Bolsonaro, o que ganhou repercussão na imprensa mundial.

DEFESA DA SOBERANIA

É neste contexto que Bolsonaro fará o discurso de aberturada Assembleia Geral. Integrantes do Itamaraty reconhecem que estaéa participação em que o Brasil terá o ambiente mais hostil. O texto, elabora doem conjunto com os ministros Ernesto Araújo( Relações Exteriores) e Augusto Heleno (Gabinete de Segurança Institucional/GSI), deve se aproximar das narrativas dos governos militares de defesa da soberania e com o argumento que apenas o Brasil tem autoridade para decidi roque faz na floresta.

Bolsonaro vai reforçar o entendimento do governo de que é preciso incentivar o desenvolvi mentona Amazônia e apresentar dados que, segundo ele, mostram“a realidade do que acontece no país ”. Para Bolsonaro, o Brasil é vítima de uma “perseguição internacional” de países que têm interesses em se apropriar da Amazônia. Ele ainda atribui os danos à imagem do país no exterior a grupos brasileiros que fazem oposição ao seu governo.

Para o diplomata e ex-ministro da Fazenda Rubens Ricupero, a única chance de o Brasil melhorar sua imagem no exterior seria fazer um discurso reconhecendo a gravidade dos problemas internos, incluindo nas questões ambientais.

—Eu não vejo a possibilidade, por mais remota que seja, de ele (Bolsonaro) melhorar no plano internacional. O discurso dele visa sobretudo o público interno, os apoiadores dele, integrantes das Forças Armadas e grupos que têm essa paranoia da cobiça estrangeira sobre a Amazônia. Em tudo o que ele faz, ele se preocupa mais com as questões domésticas — disse Ricupero, que ministro do Meio Ambiente e secretário-geral da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (Unctad).

O presidente também deve usar seu tempo de exposição na ONU para pregar contra a esquerda, e dedicará parte de sua fala a criticar o regime de Nicolás Maduro, da Venezuela, e Cuba. Em outro movimento que reforça a atuação de Bolsonaro como principal aliado dos Estados Unidos nas articulações contra Maduro, o Itamaraty pediu à ONU a inclusão de dois aliados de Juan Guaidó — líder opositor que se autoproclamou presidente interino, com apoio de mais de 50 países —na delegação brasileira que participará da Assembleia Geral. Com a medida, o governo Bolsonaro justificou que quer garantir a presença de representantes de Guaidó na ONU.

‘APREENSÃO’ NA EXPECTATIVA

Coordenadora da ONG Conectas Direitos Humanas, credenciada na ONU, Camila Asano diz que o discurso de Bolsonaro é aguardado com “apreensão” tanto por representantes da sociedade civil como por líderes mundiais preocupados com temas sociais. Ela lembra que, em janeiro, durante o Fórum Econômico Mundial em Davos, na Suíça, Bolsonaro defendeu o que chamou de “direitos humanos verdadeiros”, além de, em julho, o governo ter adotado medidas que afetam as condições de trabalho do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura.

— O governo Bolsonaro tenta mostrar uma imagem de normalidade democrática e até estabilidade econômica. Só que os feitos desse governo e a situação atual que estamos vivendo no Brasil não sustentam essa imagem. O mundo sabe o que está ocorrendo aqui. O próprio presidente tem feito questão de, nos seus últimos pronunciamentos, mostrar o seu grau de intolerância, desrespeito às instituições democráticas e aos direitos humanos — observa Camila Asano. Na comitiva de Bolsonaro estão a primeira-dama, Michelle, e o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), seu filho, que deve ser indica dopara assumira Embaixada do Brasil nos EUA, além de ministros e um senador, entre outros. Na programação da viagem, segundo Bolsonaro, está um jantar com o presidente dos EUA, Donald Trump.

COMO SETE PRESIDENTES ABRIRAM SEUS DISCURSOS*

João Figueiredo

Em 1982, já quase no fim da ditadura, o discurso se concentrou nos conflitos da época — Iraque contra Irã, Israel contra Líbano, além de guerras civis na América Central e África — e na crise da dívida externa nos países em desenvolvimento: “Neste momento, em que vai iniciarse o debate geral, manifesto a esperança de que esta sessão da Assembleia Geral contribua, eficazmente, para a solução justa das controvérsias que abalam a paz e a segurança internacionais, e para a superação das ameaças à estabilidade da economia mundial.”

José Sarney

Em 1985, o primeiro presidente civil desde João Goulart saudou o fim da ditadura e destacou a independência da política externa brasileira, condenando o apartheid na África do Sul: “Pesam-me graves problemas, responsabilidades imensas. Recorro a versos do maior poeta de minha terra [Bandeira Tribuzi], para definir minha comoção. A poesia não é incômoda nem anacrônica no cenário dos grandes debates. ‘Que sonho raro será mais puro e belo e mais profundo do que esta viva máquina do mundo?’”

Fernando Collor de Mello

Em 1990, pautou o discurso pelas mudanças no Brasil e no mundo, com a queda do Muro de Berlim. Disse que a globalização precisava “ser para todos”, defendeu o combate à miséria e o desarmamento, em especial o nuclear: “Esta é a primeira vez em que me dirijo à Assembleia Geral das Nações Unidas. Registro com emoção a coincidência de inaugurar este ano o debate geral precisamente quando, no Brasil e no mundo, transformações múltiplas e profundas estão revendo os conceitos e preconceitos que há décadas vinham asfixiando a comunidade de nações.”

Fernando Henrique

Em 2001, sete anos depois de assumir a Presidência, estreou na Assembleia Geral logo depois dos atentados do 11 de Setembro, que pautaram seu discurso: “A ação mais contrária ao diálogo e ao entendimento entre os homens marcou o mês de setembro em Nova York, como também em Washington: a violência absurda de um golpe vil e traiçoeiro dirigido contra os Estados Unidos da América e contra todos os povos amantes da paz e da liberdade. Foi uma agressão inominável a esta cidade, que, talvez mais do que qualquer outra, é símbolo de uma visão cosmopolita”.

Luiz Inácio Lula da Silva

Em 2003, defendeu o combate à fome, destacando os Objetivos do Milênio estabelecidos pela ONU em 2000, reforçou a independência da política externa e sinalizou que diversificaria as relações do Brasil: “Que minhas primeiras palavras diante deste Parlamento Mundial sejam de confiança na capacidade humana de vencer desafios e evoluir para formas superiores de convivência no interior das nações e no plano internacional. Em nome do povo brasileiro, reafirmo nossa crença nas Nações Unidas. Seu papel na promoção da paz e da justiça permanece insubstituível”.

Dilma Rousseff

Em 2011, diante dos reflexos da crise financeira de 2008 e da Primavera Árabe, defendeu o multilateralismo para evitar catástrofes e confirmou o apoio do Brasil ao ingresso da Palestina como país-membro da ONU: “Pela primeira vez, na história das Nações Unidas, uma voz feminina inaugura o debate geral. É a voz da democracia e da igualdade se ampliando nesta tribuna, que tem o compromisso de ser a mais representativa do mundo. É com humildade pessoal, mas com justificado orgulho de mulher, que vivo este momento histórico.”

Michel Temer

Em 2016, um mês depois de empossado após o impeachment de Dilma, defendeu o processo e disse que levaria o Brasil “pelo caminho da responsabilidade”: “O Brasil traz às Nações Unidas sua vocação de abertura ao mundo. Somos um país que se constrói pela força da diversidade. Acreditamos no poder do diálogo. Defendemos com afinco os princípios que regem esta organização. Princípios que são, hoje, mais necessários do que nunca.”