O globo, n.31456, 21/09/2019. País, p. 04

 

Veto parcial 

Gustavo Maia 

Daniel Gullino

21/09/2019

 

 

A iniciativa da Câmara dos Deputados de resgatar pontos polêmicos do projeto da reforma partidária pode esbarrar no Palácio do Planalto. A equipe do presidente Jair Bolsonaro começou a analisar o texto aprovado na noite da última quarta-feira e há disposição de vetar algumas das propostas. Essa intenção, no entanto, não foi bem recebida entre os parlamentares. De acordo com um interlocutor frequente do presidente, a maior probabilidade é que ele desagrade boa parte do centrão da Câmara. Outro auxiliar de Bolsonaro destacou a mobilização popular que pressionou o Senado a recuar da intenção de aprovar a primeira versão do texto. Esse ponto deve pesar na decisão do chefe do Executivo, cuja base eleitoral se insurgiu nas redes sociais contra o projeto. O ponto mais controverso é o que permite o pagamento de advogados e contadores sem que esses recursos passem pela conta oficial de campanha. Os valores seriam declarados à Justiça Eleitoral, mas estariam fora do teto de gastos imposto a cada candidatura. Para especialistas em transparência, essa regra pode estimular o drible ao limite de gastos e abrir brecha para lavagem de dinheiro. Existe na Câmara a avaliação de que, como os deputados analisaram o projeto duas vezes e aceitaram fazer mudanças, um veto de Bolsonaro não seria bem aceito. O líder do PL, Wellington Roberto (PB), classifica a possibilidade como uma “afronta”.

—Eu posso dizer o seguinte: se o governo vetar, vai assumir a responsabilidade de afrontar mais uma vez o Parlamento — disse. — Não tem o que argumentar. Votamos por duas vezes, mesmo com todo o expurgo da Casa vizinha. Acho que a Câmara não vai aceitar isso porque já emitiu sua opinião por duas vezes.

Jair Bolsonaro terá 15 dias úteis para decidir se sanciona a matéria, contados da data do recebimento pela Presidência, o que ainda não ocorreu. O texto já começou a ser analisado pela Subchefia de Assuntos Jurídicos (SAJ) da Presidência, comandada pelo ministro da Secretaria-Geral, Jorge Oliveira.

CÂMARA E SENADO

Para valer a tempo das eleições do ano que vem, o projeto precisa ser sancionado pelo presidente da República até 4 de outubro. O prazo apertado foi usado como justificativa pelos parlamentares —entre eles o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ) — para aprovar o texto às pressas. Na terça, o Senado reduziu o projeto ao dispositivo que regulamenta o fundo eleitoral com recursos públicos. Cerca de 24 horas depois, os deputados retomaram o texto que haviam aprovado há duas semanas quase na íntegra, retirando apenas quatro dos itens que provocaram mais críticas de entidades que defendem transparência. Foram suprimidas a permissão de que os partidos pudessem corrigir erros na prestação de contas até o julgamento na Justiça, o aumento no prazo para a prestação e correção de contas partidárias, a permissão do uso de vários sistemas para a prestação e a previsão para que partidos fossem multados por erros na prestação só quando houvesse dolo. Também foi alterada a redação de um trecho que permitia pagar advogados para processos criminais de políticos com o fundo partidário. Na nova versão, a autorização se refere apenas a processos eleitorais. Como é permitido usar o fundo partidário para gastos eleitorais, a mudança só regulamenta o que já acontece hoje.

CRÍTICAS

Um ponto polêmico que permanece no texto é o que limita o pagamento de multas aplicadas pela Justiça Eleitoral. O projeto prevê que somente poderá ser suspenso o repasse de metade do valor do fundo partidário quando a legenda for multada. Isso, na prática, alongará o prazo para a quitação. O texto também autoriza que as siglas gastem recursos do fundo partidário na compra de imóveis ou construção de suas sedes, o que também é alvo de críticas.

O projeto muda também o momento em que as candidaturas são avaliadas pela Justiça Eleitoral. Hoje, isso ocorre no momento do registro e, com a mudança, essa análise poderá ser feita até a data da posse, o que abre a possibilidade de eleição de políticos ficha-suja. A proposta ainda retoma a propaganda partidária, com a reserva de tempo de TV para as legendas fora do período eleitoral. Esse tipo de veiculação foi encerrada em 2017 para que os recursos da renúncia fiscal dessa medida ajudassem a financiar o fundo eleitoral. No novo formato, os partidos teriam direito a inserções durante a programação das emissoras e não mais programas, como no passado. Os críticos ao texto consideram que o projeto pode diminuir a transparência, dificultar a fiscalização e favorecer irregularidades em campanhas, como caixa dois. Na quarta-feira, antes da votação na Câmara, entidades de defesa da transparência entregaram a Rodrigo Maia uma carta aberta em protesto a alguns pontos do projeto. Alguns deles foram derrubados, mas outros permanecem, como o pagamento de advogados por terceiros.

“Se o governo vetar, vai assumir a responsabilidade de afrontar mais uma vez o Parlamento. Acho que a Câmara não vai aceitar isso, porque já emitiu sua opinião por duas vezes”

Wellington Roberto,

líder do PL

O texto da reforma já está sendo analisado por assessores jurídicos de Bolsonaro

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Circunstâncias da lei do abuso de autoridade se repetem

Miguel Caballero

21/09/2019

 

 

Três semanas depois de vetar parcialmente o projeto de lei do abuso de autoridade, o presidente Jair Bolsonaro receberá a reforma partidária feita pela Câmara, obrigado a sancioná-la até o próximo dia 4 para que as novas regras valham já para as eleições de 2020.

Como no projeto anterior, Bolsonaro está diante outra vez de uma escolha em que, de um lado, há a pressão de parte de seus apoiadores pelo veto a um projeto criticado; e, de outro, a inconveniência de fazer novo movimento de confrontação ao Congresso. A recomendação de assessores do presidente é repetir a solução de um veto parcial do projeto, como no caso do abuso de autoridade. Naquela ocasião, a líder do governo no Congresso, Joice Hasselmann (PSL-SP), relatou um diálogo com o presidente no qual Bolsonaro teria dito estar se sentindo entre a cruz e a espada porque “se eu vetar tudo, crio um problema com parte do Congresso. Se eu não vetar nada, crio um problema com a população”. A rigor, o meio-termo do veto à lei de abuso de autoridade não foi equidistante dos dois lados. Ao barrar 36 pontos de 19 artigos, Bolsonaro cedeu mais à pressão dos que viam na lei um entrave ao combate à corrupção —os vetos ainda serão reavaliados pelo Congresso. Era uma semana em que o presidente precisava dar uma resposta à parte “lava-jatista” de sua base, insatisfeita com a indicação de Augusto Aras para a Procuradoria-Geral da República, anunciada no mesmo dia dos vetos. Agora as circunstâncias são as mesmas: a reforma partidária chega às mãos de Bolsonaro num momento de racha na sua militância nas redes, parte insatisfeita com a oposição do presidente e de seus filhos à criação da CPI dos tribunais superiores no Congresso. Um vídeo do senador Flávio Bolsonaro explicando essa posição lhe custou críticas na internet.

A decisão final será de dosagem: um veto abrangente à lei criticada por afrouxar o controle sobre os gastos dos partidos é uma chance para Bolsonaro amenizar o desgaste com parte de sua base, mas pode fazer piorar o cenário para o presidente no Congresso.