O globo, n.31454, 19/09/2019. Opinião, p. 03

 

Clube-empresa é um desafio legal

Flávio Zveiter 

Márcio Guimarães 

19/09/2019

 

 

Merece aplausos a iniciativa do presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, de coordenar a elaboração de um projeto de lei para profissionalizar a estrutura dos clubes de futebol e transformá-los em empresas.

No entanto, há vários pontos sensíveis no esboço do projeto distribuído pelo deputado Pedro Paulo. Por exemplo, o que trata da recuperação judicial do clube-empresa, com a sua submissão imediata ao regime de insolvência, podendo ingressar com requerimento de recuperação judicial e também estar submetido ao pedido de falência.

Os clubes de futebol possuem peculiaridades que os diferenciam de outras atividades empresariais, o que justificaria inclusive a criação de um “código de insolvência” específico.

Ao se tornar empresa, um clube de futebol poderia, em tese, imediatamente sofrer uma série de pedidos de falência por parte de credores, inclusive os trabalhistas — todos os empregados com salários atrasados! Alguém consegue imaginar a decretação de falência do Fluminense ou do Corinthians, com a liquidação do clube? Mas ela pode ser inevitável.

Outro ponto sensível diz respeito ao plano de recuperação judicial, normalmente baseado em uma previsibilidade de receitas. Atualmente, um clube médio na serie A recebe algo em torno de R$ 80 milhões de direitos televisivos; contudo, caso ele seja rebaixado, essa fonte pode ser drasticamente reduzida para a casa dos R$ 8 milhões, o que inviabilizaria qualquer plano de recuperação. O efeito do não cumprimento do plano de recuperação judicial seria também a imediata falência do clube.

Outro ponto que merece destaque: ao requerer a recuperação judicial, o clube perderia o “benefício” do ato trabalhista e teria, por determinação da lei, o prazo de um ano para quitar todos os seus débitos. Será que o Botafogo, por exemplo, conseguiria nesse período quitar os quase R$ 140 milhões de sua dívida trabalhista? E o inevitável efeito de não cumprir esta obrigação seria também a imediata falência do clube.

São muito comuns os casos nos quais os juízes responsáveis por processos de recuperação judicial decidem intervir na governança da empresa, determinando, por exemplo, que não haja qualquer mudança no conselho e no managemen t sem a prévia anuência do Judiciário. Como reagiria um clube de futebol, mundo onde a paixão se sobrepõe à razão? Imagine-se ainda um caso mais extremo, no qual o Judiciário entenda que para se cumprir um plano de recuperação aprovado pelos credores não pode haver redução drástica das receitas e, portanto, determine que esse clube não possa ser rebaixado. Parece esdrúxulo, mas seria possível, baseado na função social da empresa.

Além disso, são inúmeros os processos de recuperação judicial em que a solução para a empresa em crise é a mudança de controle ou mesmo a venda de ativos, o que, no caso de um clube de futebol, pode ser a sua marca. Imagine-se o Cruzeiro sendo vendido para um investidor estrangeiro sem nenhuma relação afetiva com o clube e com a sua história. A torcida aceitaria essa solução?

Isso sem falar nos crimes previstos no artigo 168 da Lei de Recuperação Judicial que, se aplicado, pode levar muitos dirigentes esportivos a serem processados criminalmente. Essas são apenas algumas das situações que podem vir a acontecer se o projeto de lei for tratado com açodamento, sem análise profunda de suas consequências.

Contudo, ressalte-se ser muito positivo o patrocínio do presidente da Câmara dos Deputados ao tema, pois atraiu a atenção de todos os stakeholders quanto à urgente necessidade de se discutir um modelo moderno de gestão do futebol, dando-se o tratamento específico à sua peculiar atividade, a fim de se criar um ambiente de negócios atrativo e seguro para potenciais investidores.