O globo, n.31454, 19/09/2019. País, p. 04

 

Regras afrouxadas 

Natália Portinari

Gustavo Maia

Naira Trindade 

19/09/2019

 

 

A Câmara dos Deputados aprovou, na noite de ontem, a reforma partidária e eleitoral que afrouxa regras de fiscalização de contas partidárias e impõe um teto às multas para partidos que descumprirem a prestação de contas. O projeto, aprovado pelos deputados na semana retrasada e depois modificado pelo Senado, foi retomado quase na íntegra, conforme acordo feito entre Rodrigo Maia (DEM-RJ), presidente da Câmara, e líderes do centrão em reunião na manhã de ontem.

Foram suprimidos apenas quatro pontos do texto que tiveram repercussão negativa: a permissão de que os partidos pudessem corrigir erros na prestação de contas até o julgamento na Justiça, outro que aumenta o prazo para a prestação e correção de contas partidárias, um terceiro que permitia vários sistemas

para a prestação além do usado pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e um quarto que determinava que partidos só fossem multados por erros na prestação quando ficasse comprovado dolo.

Também foi alterada a redação de um trecho que permitia pagar advogados para processos criminais e contadores com o fundo partidário. Na nova versão, a autorização se refere apenas a processos eleitorais.

Para a construção do acordo, os deputados se basearam no texto inicial do projeto. Até o fechamento desta edição, deputados votavam destaques, mas o acordo era para rejeitar todos.

— A Câmara tem convicção do que aprovou, sabe que alguns pontos geraram polêmica, que precisam ser deixados fora do texto ou melhorada a sua redação com alguma emenda de redação. Mas nós não temos dúvida que nós votamos, na maioria dos artigos, aquilo que nós entendemos que é o melhor para o processo eleitoral e partidário — afirmou Maia, ao defender a retomada da proposta inicial.

O trecho mantido que permite que pessoas físicas, partidos ou os candidatos paguem diretamente advogados em campanhas eleitorais vai regularizar uma prática que hoje é considerada caixa dois, alertam especialistas em transparência. Esses pagamentos não circulariam pelas contas únicas dos candidatos e comitês financeiros, mas deveriam ser declarados. Segundo o projeto, essas despesas serão consideradas gastos eleitorais, mas serão excluídas do limite de custos de campanha.

Para Roberto Livianu, presidente do Instituto Não Aceito Corrupção, a medida é uma brecha para que dinheiro captado indevidamente seja usado em campanhas eleitorais.

— A contratação de advogados e consultores por pessoas físicas é uma distorção que permite que esses pagamentos sejam usados para lavar dinheiro —afirmou.

Outro ponto polêmico que permanece no texto é o que limita o pagamento de multas aplicadas pela Justiça Eleitoral. O projeto prevê que somente poderá ser suspenso o repasse de metade do valor do fundo partidário quando a legenda for multada. Isso, na prática, alongará o prazo para a quitação.

O texto também autoriza que as siglas gastem recursos do fundo partidário na compra de imóveis ou construção de suas sedes, o que também é alvo de críticas.

O projeto muda também o momento em que as candidaturas são avaliadas pela Justiça Eleitoral. Hoje, isso ocorre no momento do registro e, com a mudança, essa análise poderá ser feita até a data da posse, o que abre a possibilidade de eleição de políticos ficha-suja.

A proposta ainda retoma a propaganda partidária, com a reserva de tempo de TV para as legendas fora do período eleitoral. Esse tipo de veiculação foi encerrada em 2017 para que os recursos da renúncia fiscal dessa medida ajudassem a financiar o fundo eleitoral.

No novo formato, os partidos teriam direito a inserções durante a programação das emissoras e não mais programas, como no passado. O único trecho preservado pelo Senado, que garante fonte de financiamento para o fundo eleitoral e prevê a fixação a cada ano pela lei orçamentária, também será mantido.

OS RECUOS

Na Câmara, o recuo feito pelo acordo envolve quatro pontos. Foi retirado um artigo que permitia usar recursos do fundo partidário para pagar advogados e contadores fora do período eleitoral, o que poderia permitir até o uso em processos criminais. Os deputados desistiram ainda do trecho que permitia a utilização de qualquer sistema para a prestação de contas, tirando a obrigatoriedade de utilizar o modelo disponibilizado pelo TSE, o que poderia dificultar a fiscalização.

Outra mudança foi retirar do projeto original a previsão de que só ocorresse punição aos partidos quando houvesse dolo, o que poderia até gerar anistia em projetos em andamento. Também se desistiu de aumentar o prazo para prestações de contas.

O Congresso corre contra o tempo porque, para valer nas eleições do ano que vem, as mudanças precisam ser sancionadas até um ano antes do pleito, marcado para 4 de outubro de 2020.

Como ficou o texto aprovado

O que sai

> Prestação de contas

Possibilidade de entregar a prestação de contas dos partidos com qualquer sistema, e não apenas o do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), além de prazo maior para a entrega.

> Uso do fundo

A proposta trazia a permissão para uso de recursos públicos do fundo partidário para pagamento de advogados e contadores.

> Exigência de dolo

Exigência de que deveria haver “dolo” para que partidos fossem multados por erros na prestação de contas, o que possibilitaria inclusive anistia em processos que estivessem em andamento.

O que fica

> Brecha para caixa 2

Possibilidade de que pessoas físicas, candidatos ou partidos paguem diretamente serviços de advogados e contadores na campanha, o que hoje seria considerado caixa dois.

> Limite a multas

Estabelece um teto para o pagamento de multas de 50% dos repasses mensais do fundo partidário, o que alonga o prazo para quitação.

> Horário na TV

O projeto prevê a recriação do tempo de televisão para partidos fora do período eleitoral. Em vez de programas, como no passado, as legendas teriam direito a inserções durante a programação das emissoras.

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Divisão de ônus num aparente desalinho

Miguel Caballero

19/09/2019

 

 

O desacordo entre Câmara e Senado sobre a reforma partidária em curso no Congresso foi um raro episódio em que Rodrigo Maia e Davi Alcolumbre, tão afinados desde janeiro, ostentaram posições, pelo menos em público, divergentes. Maia apressou-se em negar qualquer impressão de desalinho, dizendo que ele e o presidente do Senado são como “irmãos siameses”.

Terá mesmo mais chances de errar quem apostar num descompasso entre os dois. Principalmente quando da aparente divergência resulta uma divisão equilibrada dos desgastes decorrentes da defesa de propostas impopulares. Maia assumiu o eventual ônus de aprovar uma reforma partidária com a pecha de retrocesso na transparência, e se permitiu declarar-se contra um aumento do fundo eleitoral, ideia cara aos parlamentares em geral.

Do seu lado, Davi atendeu aos críticos da reforma mal afamada na opinião pública, e com a outra mão encarregou-se de advogar mais dinheiro público para bancar as eleições.

O papel de liderança sindical dos parlamentares é por vezes inerente ao comando de casas legislativas. Pode ter o custo de obrigar quem exerce este comando a adotar posições públicas incômodas em alguns momentos, mas Davi e Maia sabem que é o que lhes garante popularidade interna —e consequentemente poder.

Os dois deixam de atuar como siameses na relação com o governo. Maia mantém maior distância e críticas públicas mais afiadas a Jair Bolsonaro, com quem o presidente do Senado tem demonstrado mais entrosamento.

Se o presidente da Câmara levou boa parte dos louros pela aprovação da reforma da Previdência, é de Davi, no momento, que o presidente da República é mais dependente. Superada a Previdência na Câmara, está nas mãos do Senado a pauta econômica mais importante do governo. Além disso, para o ocupante do Planalto importa mesmo a aprovação da nomeação do deputado Eduardo Bolsonaro para ser embaixador nos Estados Unidos.

Se Davi atendeu ao grupo de senadores que era contra a reforma partidária, barrou a iniciativa da CPI da “Lava Toga”, que desagrada aos Bolsonaros. Tem também trabalhado por votos a favor da nomeação do filho do presidente, o que lhe permitiu viabilizar aspirações de senadores no governo, como as indicações de integrantes do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade).