Correio braziliense, n.20559, 06/09/2019. Mundo, p.12

 

O inferno astral de Boris

Rodrigo Craveiro

06/09/2019

 

 

Europa » Primeiro-ministro do Reino Unido sofre baixa no governo, com a renúncia do próprio irmão, Jo Johnson, ao cargo de secretário de Estado e ao Parlamento. Premiê avisa que não pedirá adiamento do Brexit e mantém 31 de outubro como a data da separação

O ex-premiê britânico Winston Churchill declarou, certa vez: “Nós somos os mestres das palavras não ditas, mas escravos daquelas que deixamos escapar”. Mais de seis décadas depois, a frase de Churchill cairia como uma luva para o sucessor Boris Johnson. Em meio a uma semana politicamente trágica, o primeiro-ministro acenou que deverá ignorar a lei aprovada pelo Parlamento, a qual o obriga a pedir o adiamento do Brexit — o processo de separação entre o Reino Unido e a União Europeia (UE) — e inviabiliza um divórcio sem acordo com Bruxelas.

“Eu preferiria morrer em uma vala”, declarou, ao ser questionado se pediria a prorrogação do Brexit, durante um pronunciamento polêmico, em que foi acusado de usar a polícia para fins pessoais. O chefe de governo discursou à frente de mais de 26 agentes posicionados em duas fileiras, em um evento na Academia de Polícia de Yorkshire, no norte economicamente desfavorecido e de maioria pró-Brexit da Inglaterra.

De mãos atadas, Boris avisou que submeterá ao Parlamento, na segunda-feira, moção sobre a antecipação de eleições gerais, medida rejeitada pelos próprios deputados. Na nova votação, ele precisará de dois terços dos votos. “Não quero eleições, mas, francamente, não vejo outra maneira”, disse. “É o único caminho a seguir para o nosso país. Temos que resolver este assunto da UE, temos que sair da UE em 31 de outubro”, acrescentou. O líder conservador negou a possibilidade de renúncia, apesar de se mostrar enfraquecido. “Olha, eu, não, realmente... (Isso) Custa um bilhão de libras por mês, não alcança absolutamente nada. (…) Eu  acho que é (algo) totalmente, totalmente inútil”, afirmou, ao responder sobre o tema a um jornalista.

Depos de derrotas sucessivas no Parlamento, o primeiro-ministro amargou ontem a deserção do próprio irmão caçula. Jo Johnson, 47 anos, renunciou ao cargo de secretário de Estado para a Ciência e as Universidades e ao posto de parlamentar. “Nas últimas semanas, estive dividido entre a lealdade familiar e o interesse nacional — uma tensão irresolúvel. É o momento para que outros assumam minhas funções como membro do Parlamento e ministro”, anunciou no Twitter.

Complicação

De acordo com especialistas, Jo exercia importante função dentro do Partido Conservador, e sua saída torna a vida de Boris ainda mais complicada. “A renúncia de Jo Johnson é profundamente prejudical. Com ela, o premiê está perdendo inteiramente o centro de seu partido. Se o próprio irmão não mais confia nele e nos interesses nacionais, por que os eleitores britânnicos confiariam?”, questionou ao Correio Anthony Glees, professor emérito da Universidade de Buckingham (Reino Unido). “A sua demissão é mais um sinal de que nada está saindo de acordo com os planos do premiê.”

Glees admitiu que uma nova eleição geral seria uma tarefa difícil. “Boris Johnson poderia pedir à rainha Elizabeth II que concorde com alterações no projeto de lei aprovado no Parlamento sem o aval dos próprios deputados. Eu duvido muito disso”, disse. O estudioso explicou que o premiê pretendia realizar eleições antes de 17 de outubro, data do encontro do Conselho Europeu. “A ideia de Boris era reunir mais de 75% dos simpatizantes do Partido Brexit que desejam um divórcio sem acordo e 55% dos eleitores conservadores que almejam o mesmo. Desse modo, ele queria costumar um acordo com Bruxelas tendo uma grande maioria parlamentar a seu favor. Mas Boris estragou tudo entre terça-feira e quarta-feira”, comentou Glees, citando a perda de supremacia na Câmara dos Comuns. O pleito também seria impossível sem a aquiescência de Corbyn e dos trabalhistas, e sem a aprovação dos deputados. “O premiê não conseguirá isso, a menos que um Brexit sem acordo seja descartado.”

Doutorando em ciência política e relações internacionais pela Universidade de Nottingham (Reino Unido), Christopher Stafford reconheceu ao Correio que o primeiro-ministro “definitivamente parece muito mais fraco” depois dos incidentes dos últimos dias. “A principal esperança de Boris é convocar eleições para tentar construir uma maioria favorável a um Brexit sem acordo. No entanto, creio ser improvável que o Parlamento permita uma eleição”, declarou. Stafford também vê a renúncia de Jo Johnson como algo “muito ruim”. “Se nem o próprio irmão quer trabalhar com ele, isso não mostra o premiê em situação favorável. Os eleitores mais moderados podem deixar de votar em Boris por causa disso.”

O desabafo do neto

Foram 37 anos de Parlamento — mais da metade de seus 71 anos de vida. Expulso do Partido Conservador pelo premiê Boris Johnson, o deputado Nicholas Soames, neto de Winston Churchill, não escondeu a emoção ao discursar na Câmara dos Comuns. “Estou muito triste que tudo tenha acabado desta maneira. A minha esperança mais fervilhante é que essa casa redescubra o espírito do compromisso, humildade e compreensão, que nos permitirá seguir adiante com o trabalho vital nos interesses de todo o país, algo que inevitamelmente foi, de modo triste, negligenciado enquanto dedicamos tanto tempo nessa luta em torno do Brexit”, declarou, tentando conter as lágrimas.

O primeiro dia de aula da princesa

Aos 4 anos, a princesa Charlotte, filha do príncipe William e de Kate Middleton, duquesa de Cambridge, começou ontem a vida escolar. A menina foi levada pelos pais até a escola de Thomas’s Battersea, uma instituição que educa 560 garotos e garotas dos 4 aos 14 anos, ao sul de Londres. A família real foi recepcionada por Helen Haslem, diretora da escola primária. Em um vídeo divulgado pelo Palácio de Kensington, Charlotte parece levemente nervosa ao chegar pela primeira vez à escola, que custa 6.429 libras (cerca de R$ 32 mil) por período. O príncipe William disse que a filha estava “muito animada”.

Pontos de vista

Por Anthony Glees

Desconexão com a realidade

“Para muitos observadores, Boris Johnson parece ter pouco conhecimento dos detalhes do Brexit e muito menos da realidade. Talvez o primeiro-ministro veja o poder escorrendo de suas mãos. Nos últimos três dias, perdeu três votações-chave no Parlamento, expulsou 21 deputados e foi derrotado na última batalha na Câmara dos Comuns com uma diferença de mais de 40 votos. Sua performance no Parlamento foi demente, ele usou uma linguagem obscena e se recusou a se desculpar pela retórica racista. Mais perigosamente, ele entregou a iniciativa de uma eleição para o líder trabalhista, Jeremy Corbyn.”

Professor emérito da Universidade de Buckingham (Reino Unido)

Por Christopher Stafford

Prorrogação improvável

“No âmbito legal, Boris Johnson agora tem de pedir à União Europeia um adiamento do Brexit. No entanto, sua principal promessa antes de se tornar primeiro-ministro foi de que ele não faria isso. Portanto, são grandes as chances de o premiê tentar evitar a prorrogação da saída da União Europeia de alguma forma.”

Doutorando em ciência política e relações internacionais pela Universidade de Nottingham