O globo, n.31454, 19/09/2019. Sociedade, p. 22
Violência doméstica
Ana Paula Blower
Rafaela D'elia
19/09/2019
Uma alteração na Lei Maria da Penha que obriga agressores a ressarcir o Sistema Único de Saúde (SUS) pelo tratamento das vítimas de violência doméstica divide especialistas e mulheres que sobreviveram a tentativas de feminicídio.
De acordo com o projeto aprovado pelo Congresso e sancionado anteontem pelo presidente Jair Bolsonaro, “aquele que, por ação ou omissão, causar lesão, violência física, sexual ou psicológica e dano moral ou patrimonial a mulher” fica obrigado a “ressarcir todos os danos causados, inclusive ao SUS”. O agressor não precisará ter sido condenado pelo ato — o pagamento ao Estado terá de ser feito mesmo com o processo ainda em curso.
O projeto, que entrará em vigor em 45 dias, prevê ainda o ressarcimento pelo que for gasto com dispositivos de segurança como tornozeleiras e botão do pânico.
No caso dos tratamentos de saúde, os valores serão calculados a partir da tabela do SUS, e o montante arrecadado deverá ser encaminhado ao Fundo de Saúde do estado ou município responsável pelas unidades que prestarem os serviços.
Uma das autoras da legislação, a deputada federal Mariana Carvalho (PSDBRO), afirmou ao GLOBO que o projeto foi motivado pelo “aumento de casos de feminicídio em Rondônia”:
— Se doer no bolso, o agressor pode pensar antes de agir.
A advogada especializada em direito das mulheres Marina Ruzzi, no entanto, questiona a eficácia da medida e alerta que o Estado precisa investir em ações de prevenção e proteção. A mudança na lei, na prática, não muda a condição da vítima de forma direta, diz ela.
— A medida de fato tenta constranger os agressores, para que eles respondam pelas consequências de seus crimes. Mas já existem medidas legais suficientes, que até podemos questionar se estão sendo implementadas ou não, com relação à vítima, que, hoje, pode, por exemplo, pedir indenização na Justiça.
‘PARECEMOS UM PESO’
Ruzzi ressalta que o estado brasileiro é signatário de diversos tratados internacionais que o obrigam a proteger as mulheres, desenvolvendo, por exemplo, políticas públicas de conscientização. Mas isso, diz, não está sendo feito:
— Então, também há uma responsabilidade do Estado (nos casos de violência doméstica). Esse tipo de iniciativa me dá a impressão de que, na mesma medida em que responsabiliza o agressor, de certa forma desresponsabiliza (o Estado) de todas as agressões.
De acordo com o Planalto, a medida é necessária para que o agressor responda “por seus atos de violência contra a mulher, não só na esfera penal e na criminalização de sua conduta, mas também por meio do ressarcimento aos danos materiais e morais causados pela sua conduta ilícita”.
Mas a sobrevivente Barbara Penna, de 25 anos, vítima de seu ex-marido, diz que a alteração na lei “faz parecer que a mulher é um peso para o Estado”.
—A Maria da Penha é uma ilusão. Uma lei que, na prática, não funciona. O problema não está só na agressão, existe muita omissão do governo, das autoridades e das delegacias. O Estado precisa focar em medidas produtivas e na punição efetiva dos agressores.
Em 2013, o companheiro de Barbara a espancou, ateou fogo nela e no apartamento em que viviam, em Porto Alegre. Depois, jogou a mulher da varanda do terceiro andar. No incêndio, morreram os dois filhos de Barbara — Isadora, de 2 anos, e João Henrique, quatro meses — e um vizinho de 76 anos que tentou ajudá-la. Ela já passou por 223 cirurgias, a maioria delas pelo SUS.
Esfaqueada há um ano por seu ex-marido, Kamila Oliveira, de 31 anos, também não acredita na eficácia da nova lei. Ela ficou internada por uma semana no Hospital Municipal Albert Schweitzer, em Realengo, para a reconstrução da veia da jugular, que hoje só bombeia 30% do sangue que deveria.
— Isso adiantaria para os homens que têm dinheiro, mas os homens ricos que batem em mulher contratam bons advogados e acabam revertendo a situação, e a culpa recai sobre a mulher — afirma.
— Psicólogo para mim e para as minhas filhas é a Igreja que paga. No SUS não tem o médico para tratar o problema vascular que eu desenvolvi por causa das facadas. Quem precisa mais de ajuda são a vítima e os filhos que ficaram.
Já a juíza de direito Adriana Mello enxerga a nova lei com bons olhos, mas faz ressalvas quanto à sua viabilidade diante de uma população empobrecida.
— O custo da violência é alto para o Estado, então ter essa previsão expressa na Lei Maria da Penha é muito interessante nesse aspecto. O que temos que levar em conta é que grande parte dessas pessoas que necessitam serviços públicos de saúde são pessoas que não têm recursos, obviamente. E os agressores também não. Não vão ter como arcar com os custos, então o Estado vai ter que entrar com uma ação regressiva pra ter o ressarcimento.
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INSS deve pagar por afastamento de mulher ameaçada
Leandro Prazeres
19/09/2019
O INSS (Instituto Nacional do Seguro Social) terá de arcar com a subsistência de mulheres que tiverem de se afastar do trabalho para se proteger de violência doméstica, segundo decisão da 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça.
Para o colegiado, situações em que a mulher é obrigada a deixar o trabalho por conta de ameaças à sua integridade física ou psicológica são equivalentes a enfermidades, o que justificaria o pagamento do auxílio-doença.
O julgamento preenche uma lacuna deixada pela Lei Maria da Penha, de 2006, que prevê que mulheres vítimas de violência doméstica e que sejam alvo de alguma medida protetiva tenham o direito de manter o vínculo trabalhista por até seis meses. Ou seja: mesmo que elas sejam obrigadas a se afastar de suas funções por força de alguma medida protetiva, elas podem continuar com o vínculo empregatício.
O problema é que a lei não determinava quem iria arcar com os custos da manutenção desse vínculo. A turma, então, adotou o entendimento semelhante ao que é dado nos casos em que uma pessoa precisa ser afastada do trabalho por conta de alguma doença.
Nessas situações, durante os primeiros 15 dias de afastamento, os custos são pagos pelo empregador. Nos demais, a despesa é paga pelo INSS.
— A vítima de violência doméstica não pode arcar com danos resultantes da imposição de medida protetiva em seu favor. Ante a omissão legislativa, devemos nos socorrer da aplicação analógica, que é um processo de integração do direito em face da existência de lacuna normativa — disse o relator do caso, ministro Rogerio Schietti.
O STJ também decidiu que as vítimas que tiverem de justificar suas ausências do trabalho, em vez de um atestado de saúde, deverão apresentar apenas o documento judicial que comprove a determinação para o seu afastamento decorrente de uma medida protetiva.