Correio braziliense, n. 20557, 04/09/2019. Mundo, p. 12

 

Um premiê acuado

Rodrigo Craveiro

04/09/2019

 

 

Reino Unido » Deputados contrários ao Brexit sem acordo impõem derrota a Boris Johnson ao tomarem o controle do Parlamento. Horas antes, deserção de conservador eliminou maioria do governo. Primeiro-ministro promete convocar eleições e expulsa 21 rebelados

Em apenas 41 dias de governo, o primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, sofreu ontem duas derrotas importantes no intervalo de poucas horas. Por volta das 22h15 (18h15 em Brasília), os deputados contrários a um Brexit sem acordo tomaram o controle da agenda da Câmara dos Comuns — a câmara baixa do Parlamento —, por 328 votos a 301. Ao todo, 21 deputados do Partido Conservador (de Johnson) votaram contra o premiê. A manobra abre caminho para um projeto de lei que impeça o chefe de governo de levar adiante um divórcio litigioso da União Europeia. Minutos após o anúncio do resultado da votação, um acuado Johnson anunciou que apresentará uma moção para convocar eleições antecipadas. “O líder da oposição (Jeremy Corbyn) está implorando por uma eleição há dois anos. Eu não quero uma eleição, mas se os parlamentares votarem amanhã (hoje) para forçar outro adiamento inútil do Brexit, então esta seria a única maneira de resolver isso”, disse.

O trabalhista Corbyn condicionou a convocação de eleições ao texto para demover Johnson de seus planos sobre o Brexit. “Esta Câmara tem uma última chance de impedir que este governo atropele os direitos constitucionais e democráticos do país”, avisou, antes de os parlamentares começarem a votar. Pouco menos de uma hora depois, a emissora britânica BBC divulgou que os 21 rebeldes serão expulsos do Partido Conservador. Entre eles estão dois ex-chanceleres e um neto de Winston Churchill, premiê em duas ocasiões (de 1940 a 1945 e de 1951 a 1955).

Ken Clarke, um desses parlamentares, lamentou à mesma rede de TV que a legenda tenha se transformado na mais direitista da história, após ser tomada “por um personagem bastante imbecil”. “Eles não estão mais no controle dos eventos. As palavras do primeiro-ministro são um completo lixo para nós”, disparou. Londres também liberou um financiamento adicional de 2 bilhões de libras esterlinas (cerca de R$ 10 bilhões) para viabilizar a separação entre Reino Unido e União Europeia (UE).  Mais cedo, o Partido Conservador sofreu uma baixa simbólica, com a deserção do deputado Philip Lee.

“É uma mudança violenta de poder”, admitiu ao Correio Rob Dover, professor de inteligência e segurança nacional pela Universidade de Leicester (Reino Unido). “Ao afirmar que somente aceitará uma eleição se um Brexit sem acordo for retirado da mesa, Corbyn coloca Johnson em uma posição terrível. O premiê precisará evitar a saída não pactuada da UE e não terá número suficiente de deputados no Parlamento para impulsionar suas outras agendas. Se exonerar os deputados conservadores rebeldes, ele ficará encarregado de um governo zumbi e dará início a uma crise constitucional como jamais vista desde 1640”, comentou. De acordo com o especialista, o primeiro-ministro espera vencer as eleições gerais ou pelo menos obter a maior bancada no Parlamento, com todos os deputados favoráveis ao Brexit.

Incômodo

Por sua vez, Christopher Stafford — doutorando em ciência política e relações internacionais pela Universidade de Nottingham (Reino Unido) — associa a rebelião dos 21 deputados da base governista ao fato de as ações de Johnson terem incomodado muitos parlamentares conservadores. “Especialmente hoje (ontem) no Parlamento, vários dos principais aliados de Johnson, principalmente Jacob Rees-Mogg, pareciam arrogantes e chateados. Johnson tinha ameaçado expulsar do Partido Conservador todos os deputados revoltosos. A derrota na votação de hoje (ontem) pode trazer problemas para o primeiro-ministro. Como não detém mais a maioria, ele não pode ser dar o luxo de perder mais parlamentares”, disse à reportagem.

Stafford lembra que o governo de Johnson já caminhava por terreno instável antes mesmo de ontem, quando possuía maioria mínima de um parlamentar. Com a rebelião interna no Parlamento e entre os tories (conservadores), a agenda do premiê na Câmara dos Comuns pode sofrer uma estagnação. Entre 10 de setembro e 13 de outubro, os parlamentares terão as atividades suspensas, graças a um pedido feito por Johnson e aceito pela rainha Elizabeth II. Johnson advertiu que um projeto de lei para barrar um Brexit sem acordo trará mais “hesitações, atrasos e confusão”.

Corbyn classificou a vitória da oposição na Câmara dos Comuns como “o primeiro teste”. “Amanhã (hoje), nós legislaremos contra os desastrosos planos (de Johnson) de um Brexit sem acordo. Nós apoiaremos um voto para convocar eleições gerais, para que o povo possa decidir sobre o futuro de nosso país, uma vez que o texto para deter o Brexit sem acordo seja uma lei”, declarou. O prefeito de Londres, Sadiq Khan, afirmou que o Parlamento “deu o primeiro passo para deter o catastrófico Brexit sem acordo de Johnson”, pediu à população que mantenha a pressão e convocou um protesto para hoje.

Na Itália, o aval para um governo de coalizão

Os membros do Movimento 5 Estrelas (M5S, antissistema) aprovaram por maioria, em votação pela internet, a formação de um novo governo de coalizão com o Partido Democrático (PD, centro esquerda). “80% (dos militantes) votaram ‘sim’ pela formação de um governo liderado por (o primeiro-ministro) Giuseppe Conte”, anunciou o líder da formação Luigi Di Maio (foto). “Em menos de um mês, conseguimos resolver uma crise governamental”, disse Di Maio, agradecendo aos “80 mil italianos que votaram em uma plataforma digital única”.

Em 8 de agosto, o líder da Liga (extrema-direita), Matteo Salvini, implodiu a aliança formada 14 meses antes com o M5S.

Eu acho...

“Apesar de pessoas como o primeiro-ministro Boris Johnson apresentarem o Brexit como uma oportunidade fantástica para o Reino Unido, as previsões não parecem boas. O Reino Unido perderá todos os acordos comerciais existentes e terá de renegociar novos. Isso levará um longo tempo, e a economia britânica sofrerá. Produtos como alimentos e medicamentos podem se tornar mais escassos e, por isso, mais caros. Politicamente, o Reino Unido pode se arriscar a se transformar em pária no cenário mundial, com influência significativamente reduzida.”

Christopher Stafford, doutorando em ciência política e relações internacionais pela Universidade de Nottingham

Frase

“Eu não quero uma eleição, mas se os parlamentares votarem amanhã (hoje) para forçar outro adiamento inútil do Brexit, então esta seria a única maneira de resolver isso”

Boris Johnson, primeiro-ministro do Reino Unido

Bastidores

Quem é o desertor

O parlamentar Philip James Lee (foto) provocou um terremoto político no Reino Unido ao abandonar o Partido Conservador e se aliar aos democratas liberais. Durante 27 de seus 48 anos, Lee foi um torie (conservador). Em julho de 2018, ele renunciou ao posto de subsecretário parlamentar de Estado para a Justiça por discordar da forma como o Brexit era gerenciado pela então premiê Theresa May. Lee é médico formado pelo King’s College London e atleta de rúgbi e de críquete. Também foi ministro da Justiça e apoiou o voto pela permanência na União Europeia no referendo de 2016.

Bate-boca com opositor

Enquanto a crise agravada com a saída de Lee deixava parlamentares atônitos, o líder do Partido Trabalhista (oposição), Jeremy Corbyn (foto), travava um duelo de retórica com o premiê Boris Johnson. Corbyn declarou que o governo “não tem mandato, não tem moral e, a partir de hoje, não tem maioria”. A resposta do primeiro-ministro foi imediata. Ele acusou o trabalhista de votar contra cada pedaço da legislação da União Europeia e de ter se convertido em um “agente daqueles que subverteriam a democracia e derrubariam a vontade popular”.

Prejuízos bilionários

Um Brexit sem acordo pode custar para o Reino Unido cerca de US$ 16 bilhões de perdas em exportações, advertiu ontem a Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (Cnuced), a agência de comércio da ONU. “As estimativas da Cnuced indicam perda aproximada de 7% de todas as exportações do Reino Unido para a União Europeia (UE)”, afirmou. “Essas perdas seriam muito maiores por causa de medidas não tarifárias, controle de fronteiras e a consequente interrupção das redes de produção existentes entre Reino Unido e UE.”

A moeda encolheu

A libra esterlina despencou para o menor valor em três anos e passou a valer, ontem, US$ 1,20. À exceção de outubro de 2016, quando caiu para US$ 1,15, a moeda britânica nunca esteve em um nível tão baixo desde 1985. A desvalorização transparece a volatilidade da economia britânica ante as incertezas que marcam o Brexit.