O globo, n.31453, 18/09/2019. País, p. 08

 

Dodge: "Democracia não sobrevive com pensamento único"

Aguirre Talento

Jailton de Carvalho

Vinicius Sassine 

18/09/2019

 

 

No seu último dia como procuradora-geral da República, Raquel Dodge afirmou ontem que vê com “muita preocupação” a atuação de um governo que “protege alguns setores em detrimento de outros”, ao se referir à atuação do presidente Jair Bolsonaro em áreas como direitos humanos, meio ambiente e minorias. A procuradora-geral defendeu a liberdade de expressão e a democracia.

— A democracia não sobrevive, quando um pensamento totalitário, um pensamento único de um governo de plantão, prevalece. Interferimos para saber se as políticas públicas são discriminatórias, se não abrangem todas as pessoas — disse Dodge, que informou ter ajuizado uma ação contra o “Escola sem Partido”.

O mandato de dois anos da procuradora-geral terminou ontem. Bolsonaro indicou Augusto Aras para o cargo. Ele ainda será sabatinado pelo Senado. Enquanto isso, o subprocurador-geral Alcides Martins assume como interino a função.

Dodge negou ter esperado passar a indicação de Bolsonaro para o posto, disputado por ela por fora da lista tríplice organizada pela categoria, para agir em relação a atos do governo. A procuradora-geral tinha chance de ser reconduzida, mas foi preterida pelo presidente.

—O mandato de dois anos é muito curto para abrir um Raquel Dodge, em balanço sobre sua gestão no comando da Procuradoria-geral da República. procedimento, instrui-lo — disse a procuradora-geral.

NOVO ESTILO

Dodge também afirmou ontem que houve “diminuição dos vazamentos” e uma “diferença de estilo” em sua gestão, em referência indireta ao seu antecessor, Rodrigo Janot. A chefe da PGR rebateu a afirmação de que não assinou acordos de delação premiada. Segundo ela, durante seu mandato, houve 19 pedidos de homologação de delação junto ao Supremo Tribunal Federal (STF) e ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), todos sob sigilo.

—Se a lei diz que não é para vazar, na minha gestão não vazou —afirmou Dodge.

A procuradora disse que pediu arquivamento de trechos da delação do ex-presidente da OAS Léo Pinheiro por “absoluta falta de elementos”. Após a decisão, na reta final de sua gestão, os seis procuradores do grupo da Lava-Jato em Brasília anunciaram renúncia coletiva. A revolta dos procuradores contra a chefe, um caso inédito na história do Ministério Público Federal (MPF), é um retrato do nível de desgaste a que chegou Dodge depois de dois anos à frente da instituição.

Dodge chegou ao comando da PGR em setembro de 2017 com um discurso arrumado sob medida para o contexto político daquele momento. A procuradora prometia coibir supostos excessos da Lava-Jato, sem se descuidar do combate aos desvios, e ampliar a atuação em áreas como proteção ao meio ambiente, direitos humanos e minorias.

Dois anos depois, o cenário é bem diferente. Sem nenhum novo grande acordo de delação, a Lava-Jato murchou nas mãos da procuradora-geral. As investigações sobre o ex-presidente Michel Temer, as mais impactantes do período, foram conduzidas pelo delegado Cleyber Malta Lopes, da Polícia Federal. Houve um momento em que Lopes chegou a reclamar, nos autos, da demora de Dodge em adotar medidas necessárias para a apuração.

Dodge é criticada também por se deixar levar pelos ventos políticos e pelos interesses pessoais. Em janeiro, saudou Bolsonaro, recém eleito, por inaugurar “um mandato de mudanças”. Quando já era certo que não seria reconduzida, a procuradora redirecionou as baterias contra Bolsonaro e fez um alerta sobre os “sinais de pressão” contrários à democracia.

Dodge ampliou as críticas internas ao tentar a recondução fora da lista tríplice e afirmar que estava à disposição para outro mandato. O aceno foi ignorado pelo presidente, mas não por boa parte dos colegas de instituição.