O globo, n.31453, 18/09/2019. Sociedade, p. 29

 

Polêmica na lavoura 

Johanns Eller 

Renata Vieira 

18/09/2019

 

 

Lançados aos holofotes pelo ritmo acelerado de liberações pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), os agrotóxicos, que já somam 325 novas autorizações desde janeiro —63 delas foram registradas ontem—, ainda despertam desconfiança na população e divergências entre especialistas.

O volume foi impulsionado por fórmulas genéricas, favorecidas pela quebra de patentes, mas reações negativas levaram o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento( Mapa) a defendera utilização dos produtos nas lavouras brasileiras. Agora, o governo planeja assinar um decreto visando o treinamento do manejo dos produtos, de olho em pequenos produtores, uma das principais vítimas de intoxicação.

O texto da proposta, anunciada no fim de julho pelo ministério, está sendo construído com o Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Renováveis (Ibama), responsável pela dimensão de impacto ambiental desses produtos, e coma Anvisa, que avalia aspectos de ris copara a saúde humana. Segundo José Guilherme Leal, secretário de Defesa Agropecuária do Mapa, as pastas de Saúde, Ambiente e Agricultura estão discutindo os termos do decreto, que deve ficar pronto até o fim do ano.

CADASTRO NACIONAL

O foco está em pequenos produtores de frutas e hortaliças. A pasta considera que, entre os grandes fazendeiros, já há conhecimento e tecnologia para garantir aplicações seguras. Em geral, grandes propriedades contam com maquinário semiautomatizado ou totalmente automatizado para aplicar agrotóxicos — e, quando há necessidade de mão de obra no momento da pulverização, ela se dá dentro de cabines acopladas aos aplicadores.

Para treinar o maior número possível de produtores/trabalhadores, o governo promete criar um sistema de cadastro de alcance nacional, à semelhança do que se viu, por exemplo, com o Cadastro Ambiental Rural (CAR). O decreto vai prever que, uma vez cadastrado, o agricultor terá de realizar um curso de aplicação de agrotóxicos.

O cronograma e os módulos do curso ainda não estão definidos, mas há três pontos principais: segurança para a saúde e para o meio ambiente e aplicação eficiente do ponto de vista agronômico. Falta definir, no entanto, o custo e a duração dos treinamentos e da implementação do cadastro. O plano é desafiador: o Brasil tem mais de 5 milhões de propriedades rurais, em sua maioria pequenas ou médias.

Atualmente, a indústria de defensivos, bem como órgãos estaduais e municipais de agricultura e meio ambiente, não tem obrigação legal de treinar agricultores na aplicação de agrotóxicos e, por isso, quando há treinamento, seu conteúdo varia de lugar para lugar. As grandes fabricantes têm iniciativas de orientação acerca do uso dos próprios produtos, mas não há regra que determine como e com que frequência deve ser realizada.

O Brasil é, hoje, o maior consumidor de agrotóxicos do mundo. Segundo a Food and Agriculture Organization (FAO), braço da ONU para a segurança alimentar e agricultura, o país dedicou US$ 10 bilhões aos produtos no último ano. Por outro lado, como pondera o setor, as terras produtivas brasileiras são as mais extensas do planeta, e o clima tropical favorece que os produtores desfrutem de duas ou até três safras por ano, o que exigiria um consumo maior do que o de outros países.

‘MAIS CONCORRÊNCIA’

Segundo o último levantamento da FAO, com dados de 2016, a proporção do uso de agrotóxicos no Brasil em relação às terras produtivas é de 4,31 quilos por hectare (kg/ha), média bem menor do que a de muitos países europeus e bem abaixo de outros grandes produtores, como a China. A liberação de fórmulas genéricas e moléculas inteiramente novas não implica na maior utilização desses defensivos, na avaliação do chefe-geral de Meio Ambiente da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), Marcelo Morandi.

— Isso significará mais concorrência de mercado. Os insumos podem representar 30% do custo de produção de algumas culturas, como as de grãos —explica o engenheiro.

— A gente precisa informar realmente a população de que nós não estamos comendo veneno e nem estamos envenenando a população. O Brasil tem regras estáveis, que seguem processos internacionais.

Já a professora do departamento de Geografia da Universidade de São Paulo (USP) Larissa Mies Bombardi, autora do “Atlas geografia do uso de agrotóxicos no Brasil e conexões com a União Europeia”, vê com preocupação o volume de autorizações.

— Não temos fiscalização suficiente no Brasil. É ineficaz, beira a inexistência. O último monitoramento foi feito em 2015, e o glifosato e o 2,4D, os mais vendidos no mercado, não foram avaliados. A Anvisa justificou que a avaliação provocaria uma mudança na rotina laboratorial. É um problema de saúde pública.

Para o adido agrícola do Mapa em Bruxelas, Guilherme Costa, também presidente da Codex Alimentarius, comissão da FAO para a regulação global de alimentos, o Brasil segue padrões internacionais. Além disso, descreve a participação das delegações brasileiras no comitê técnico sobre agrotóxicos da Codex como “robusta e ativa” e vê caminhos para uma produção com menos defensivos.

— Sempre é possível aprimorar o que está sendo feito com relação aos aspectos de sustentabilidade e de produtos fitossanitários —diz Costa.

—O importante é manter e aprimorar a base científica para as decisões de gestão de riscos a serem tomadas.