O globo, n.31448, 13/09/2019. País, p. 04

 

Demarcação de fronteiras 

Carolina Brígido 

Gustavo Maia 

Naira Trindade 

13/09/2019

 

 

Enquanto o Senado se prepara para votar a indicação de Augusto Aras para o cargo de procurador-geral da República (PGR) — motivada, segundo o presidente Jair Bolsonaro, por um alinhamento ideológico ao governo —, a independência do Ministério Público Federal (MPF) em relação ao Executivo foi objeto ontem de declarações da atual PGR, Raquel Dodge, do decano do Supremo Tribunal Federal (STF), Celso de Mello, e do próprio Aras. Em conversa com um senador, o indicado para a PGR relatou ter alertado Bolsonaro de que ele terá autonomia em sua gestão.

Ao participar pela última vez de uma sessão do STF como representante do MPF, Dodge, que deixa o cargo na próxima terça-feira, discorreu sobre a importância do Ministério Público e do Supremo para proteger a democracia e a independência entre os poderes. Ministro mais antigo do tribunal, Celso de Mello foi mais direto ao abordar o papel que cabe ao MP num regime democrático. A indicação de Aras sofreu críticas de procuradores federais por ele não ter participado da eleição interna da categoria e por ter articulado sua indicação mostrando afinamento ideológico com o presidente da República.

— O Ministério Público não serve a governos, a pessoas, a grupos ideológicos, não se subordina a partidos políticos, não se curva à onipotência do poder ou aos desejos

daqueles que o exercem. O MP também não deve ser o representante servil da vontade unipessoal de quem quer que seja, ou instrumento básico de ofensa de direito das minorias — discursou Celso de Mello.

O decano, que foi promotor de Justiça no MP de São Paulo por 19 anos até ser indicado para o STF em 1989, destacou que regimes autoritários temem o MP:

—Sabemos todos que regimes autocráticos, cidadãos corruptos e autoridades impregnadas de vocação tendente à desconstrução da ordem democrática temem o MP. O Ministério Público, longe de curvar-se aos desígnios do poder, político, econômico, corporativo, ou religioso, o MP tem a percepção superior da preservação da ordem democrática.

Nas vezes em que falou sobre os motivos para ter escolhido Aras, Bolsonaro citou sempre a área do meio ambiente como importante na atuação do PGR, que não deve ser um “xiita”, em sua visão. Sem citar diretamente Bolsonaro ou Aras, Celso de Mello também tocou nesse ponto. O ministro disse que o MP atua para proteger “uma massa enorme de cidadãos, povos da floresta e filhos da natureza injustamente perseguidos com avidez predatória dos que transgridem com desrespeito a lei”. Segundo o G1, Aras já disse que vê procuradores de duas formas: “nutella” (jovens que ganharam holofotes após a Lava-Jato) e “raiz” (os mais antigos, como ele).

PRÉ-SABATINA

Raquel Dodge pediu que o tribunal fique alerta para sinais de pressão contra a democracia, e ressaltou a responsabilidade no MP num cenário com “vozes contrárias ao regime de leis”.

— Faço um alerta para que fiquem atentos aos sinais de pressão sobre a democracia liberal, uma vez que no Brasil e no mundo surgem vozes contrárias ao regime de leis, ao respeito aos direitos fundamentais e ao meio ambiente. É grave a responsabilidade do M Pedo STF, se japara acionar o sistema de freios e contrapesos, seja para manter leis válidas perante a Constituição.

Em sua despedida, Dodge se defendeu de uma crítica recorrente à sua atuação nos dois anos como PGR, ade que teria implementado um ritmo lento ao andamento de investigações de autoridades suspeitas de corrupção, em operações como a Lava-Jato.

— A maior parte das peças que ajuizei no STF estão sob segredo de Justiça, são sigilosas. No tempo próprio elas expressarão o empenho com que trabalhei no enfrentamento da corrupção —disse, ao deixar o tribunal:

— Empenhei-me muito em sustentar todas as teses necessárias para o enfrentamento da corrupção, estou com muita clareza de que apoiei intensamente esse trabalho.

Em um de seus últimos atos, Dodge encaminhou ontem ao Supremo uma ação contra aportaria do Ministério da Justiça que permite a deportação sumária ou impedimento de ingresso de estrangeiros no Brasil. Dodge pede que a norma seja suspensa imediatamente. Assinada pelo ministro Sergio Mo roem julho, aportaria estabelece condições que definem pessoas estrangeiras consideradas “perigosas”.

Enquanto a atual PGR participava da sessão do Supremo, Aras prosseguia em sua agenda de audiências com senadores que vão sabatiná-lo. Ao registrar imagens do encontro do subprocurador com o senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE), o repórter cinematográfico Marcione Santana, da TV GLOBO, captou o momento em que Aras relata a Vieira uma conversa que teve com Jair Bolsonaro.

—Tive o primeiro contato com o presidente da República através de um amigo de muitos anos e eu disse ao presidente exatamente isso: “Presidente, o senhor não pode errar (...) porque o Ministério Público, o procurador-geral da República, tem as garantias constitucionais, que o senhor não vai poder mandar, desmandar ou admitir sua expressão. Tema liberdade de expressão para acolherou desacolher qualquer manifestação. O senhor não vai poder mudar o que for feito — disse Aras ao senador.

O indicado para a PGR tem incorporado o discurso de que será um procurador independente, discreto eque cuidará mais da instituição e menos da corporação. Um dos que receberam Aras, o senador Oriovisto Guimarães (Podemos-PR) elaborou uma espécie de pré-sabatina antecipada individual no gabinete dele. Enfaticamente, perguntou ao subprocurador sobre o que faria se tivesse de fazer uma denúncia contra o presidente da República, sem mencionar o nome de Jair Bolsonaro.

— O senhor atuaria pela gratidão e pela Constituição? Ele respondeu de pronto: “Pela Constituição. Minha gratidão é com o país, não com as pessoas” — relatou o senador.

Aras já visitou 19 senadores em particular, além das bancadas do PT, MDB e do colégio de líderes. Ele tem evitado falar à imprensa. Sua sabatina deve ser agendada para o dia 25 de setembro.

Ao GLOBO, o relator do caso, Eduardo Braga, disse ter uma “impressão positiva” do indicado e contou que falou especificamente sobre a Lava Jato como subprocurador:

— A questão do combate à corrupção é absolutamente necessária, mas muitos acham que é preciso combater alguns exageros que transformam o combate à corrupção e o crime em uma razão para muitas vezes não se obedecer ao estado democrático de direito.