Correio braziliense, n.20563, 10/09/2019. Cidades, p.17

 

Entrevista - Ben-Hur Viza: "Mulheres precisam denunciar violência"

Ben-Hur Viza

Mariana Machado

10/09/2019

 

 

Magistrado destaca a importância de investir em educação, conscientização e também questiona a masculinidade tóxica

Mortas por espancamento, arma de fogo ou facadas, 19 mulheres foram vítimas de feminicídio no Distrito Federal em 2019. Uma delas, Francisca Náidde de Oliveira Queiroz, 57 anos, acabou baleada pelo marido em junho, dentro de casa, no Cruzeiro. Os números podem aumentar se as mortes da advogada Letícia Curado e da auxiliar de cozinha Genir Pereira, vítimas do cozinheiro Marinésio também forem classificadas como feminicídio. Nos registros, em ao menos metade, as mulheres nunca haviam feito queixa policial, como ressaltou o coordenador do Núcleo Judiciário da Mulher e titular do Juizado de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher do Núcleo Bandeirante, Ben-Hur Viza, convidado desta segunda-feira do CB. Poder, parceria entre o Correio e a TV Brasília.

O magistrado ressaltou a importância das denúncias em casos de violência doméstica e lembrou que o feminicídio é um eventual desdobramento dessa situação. Além disso, ele garante que o machismo e a masculinidade tóxica são prejudiciais para ambos os sexos. Segundo ele, a conscientização deve ser feita desde a juventude, em casa e nas escolas.

"O Estado tem se aparelhado, temos um policiamento no DF chamado Provid, que acompanha mulheres e homens"

"Nós temos alguns conceitos de que a mulher é ‘rainha do lar’ e isso, às vezes, é um pouco de engodo para a mulher"

O que aumentou? O número de casos ou as mulheres passaram a denunciar mais?

Depois da Lei do Feminicídio, nós passamos a ter uma visibilidade do que seja o feminicídio. Até 2015, quando uma mulher morria, ela contava na mesma estatística de que morria um homem. Então morreram tantas pessoas vítimas de homicídio. Ali estavam homens e mulheres. A partir de 2015, o assassinato da mulher pela condição de mulher passou a ter uma maior visibilidade. Então, hoje nós sabemos, por exemplo, principalmente pelo excelente trabalho que a mídia tem feito nesse sentido, que várias mulheres foram vítimas de tentativa de feminicídio, de feminicídio, então, hoje nós temos uma comunicação e informação mais eficientes e maior visibilidade. As pesquisas a que temos acesso dizem que, por exemplo, metade ou 60%, ou em alguns casos até 70% das mulheres que foram vítimas de feminicídio, não haviam registrado ocorrência.

O que fazer para reduzir essa triste estatística?

Nós precisamos ter um trabalho muito intenso. Há uma distinção entre violência e feminicídio. Feminicídio é uma forma de violência, mas, na lei Maria da Penha, por exemplo, nós nos debruçamos muito na violência doméstica e familiar — aquela que acontece em casa ou entre pessoas com relação íntima de afeto mesmo sem morar junto. O feminicídio costuma ser um desdobramento dessa violência e fruto dessa cultura machista que temos na sociedade. Tivemos casos recentes denunciados pela mídia de homens que mataram mulheres que se opuseram à vontade daquele homem de ter uma relação com ela. Então a mulher disse não e ele se achou no direito de matar. Esse é um conceito cultural, social, em que o homem vai podendo tudo e a mulher tem que ser a submissa. Temos que fazer duas coisas em relação à violência contra mulher e feminicídio: precisamos trabalhar com essas mulheres para que elas tenham consciência de que estão vivendo um processo de violência e de que o Estado vem se aparelhando cada dia mais para enfrentar essa violência. A mulher precisa saber que pode ir a uma delegacia e pedir uma medida protetiva e tirar esse homem de casa no mesmo dia.

A mulher tem medo da retaliação. Como ter segurança de que não vai ser pior denunciar?

O pior é perder a vida. Precisamos trabalhar num processo de conscientização da sociedade. Precisamos trabalhar com as crianças nas escolas, e Tribunal de Justiça, com outros 11 parceiros, tem o projeto Maria da Penha vai à escola. Trabalhamos com as crianças a questão da igualdade. Não é dizer que menino é igual à menina. Homem é igual à mulher. A gente sabe que biologicamente são distintos. Basta olhar. Mas nós precisamos saber que o homem não tem direito de agredir. Que o homem, por exemplo, tem direito de chorar e dar vazão à sua emoção, para que amanhã você não tenha um número acentuado de homens se suicidando, porque não conseguem lidar com a emoção. Nós precisamos saber que esse homem, se passa por processo de infidelidade conjugal, tem outra solução que não seja tirar a vida daquela mulher, até porque isso não resolve nada. Mas isso é um processo histórico que temos que desconstruir.

No curto prazo, isso é difícil. A gente vê muitos casos em que elas denunciam e o companheiro vai lá e desconta no filho ou mata essa mulher. Como resolver no curto prazo?

A mulher pode ter consciência de que pode denunciar e pode ficar sujeita a um risco. Mas as que não denunciam estão morrendo. Mais mulheres que não denunciam morrem do que as que denunciaram. Se você considerar, por exemplo, o índice de mulheres que morrem com medida protetiva, é um número infinitamente menor do que as mulheres que morrem sem medida protetiva. O Estado tem se aparelhado, temos um policiamento no DF chamado Provid, que acompanha mulheres e homens. O índice de feminicídio nessas mulheres é zero. Temos a tornozeleira eletrônica que monitora esse homem com áreas de inclusão e de exclusão, onde ele tem que ficar. Temos o dispositivo Viva Flor que a mulher aciona a polícia com imediatidade superior aos demais chamados. Estamos caminhando agora para instalar dispositivo eletrônico que vai se comunicar com a tornozeleira que já existe. Então, a mulher, ainda que esteja se locomovendo, vai ser possível controlar a aproximação. Tudo isso são mecanismos que a gente busca para equipar e passar mais segurança para essa mulher.

Houve avanço no combate à violência contra a mulher e ao feminicídio nos últimos anos?

Avançamos muito no estímulo da mulher denunciar. Antes não sabíamos se o homem se aproximou da casa. Hoje temos a tornozeleira eletrônica. Antes, se o homem chegasse perto da casa, mas não praticasse nenhuma violência concreta (porque a psicológica sempre tem, basta ameaçar. Saber que a pessoa que ameaçou está em frente é um risco maior). Hoje nós temos uma figura em que a polícia pode prender. Antes, não.

A educação é uma ferramenta importante...

Esse processo passa pela educação. Eu falo da educação na escola, onde tem maior concentração de crianças, mas passa também pela informação, pela construção de instrumentos de lazer em que o homem não seja estimulado à violência e saiba que precisa respeitar. Nós temos trabalhos, por exemplo, em que vamos à Secretaria de Saúde, Secretaria de Educação e Secretaria de Segurança. Temos trabalho nas igrejas. Quando você começa a se aprofundar nesses estudos, as religiões podem ser parceiras. Nós fizemos uma reunião no Núcleo Bandeirante com lideranças religiosas espírita, católica e evangélica. São as três principais expressões religiosas da cidade. Nenhum dos três quer que o homem agrida a mulher. O Estado também não.

E a questão cultural?

Nós temos alguns conceitos de que a mulher é “rainha do lar” e isso, às vezes, é um pouco de engodo para a mulher, porque ela passa a ser rainha, mas ela meio que vira uma escrava do lar. Ela tem que fazer tudo dentro de casa. Só ela faz, é responsável pela limpeza, por lavar, passar, cuidar dos filhos, marido, deixar almoço e jantar prontos quando ele chega. O arroz não pode queimar, o feijão não pode queimar, o café não pode ter muito açúcar, não pode ter muito pó, o angu não pode ter caroço... Você vai impondo à mulher um ônus com o título de rainha do lar e no dia das mães dá um presente para ela. Mas isso está tão encarnado na cultura que, às vezes, o homem agride a mulher quando ela falha em alguma dessas atividades que até é humanamente impossível desenvolver todas com perfeição. Entra de novo a importância da educação, de mostrar isso desde o início para as crianças, jovens em formação de que isso tem relação direta co o que vem depois.

Do ponto de vista legal, nós já temos todos os mecanismos que promovam a punição de quem agrediu e proteção de vítimas ou se precisamos de ajustes e onde?

Temos o Código Penal. Talvez alguma pena poderia ser modificada. Eu acho que a pena de ameaça é muito branda, de um a seis meses. E uma ameaça transforma a vida de uma pessoa, muda a rotina, cria uma série de problemas e poderia ter uma qualificadora, por exemplo, na violência doméstica. Quando a Lei Maria da Penha chegou, foi considerada a terceira melhor do mundo. Depois disso, ela passou por algumas mudanças pequenas. Trouxe a legislação e tipificação como qualificadora do feminicídio.

Seria um núcleo para que o agressor passe por capacitação? Um treinamento para que ele entenda esse processo?

Temos no Judiciário um trabalho com grupos de homens. Ali são debatidas questões como a violência, o mal que o machismo faz tanto para a mulher quanto para o homem, é abordada a questão do esclarecimento do funcionamento do sistema, a masculinidade tóxica.

O senhor comentou que o feminicídio é desdobramento da violência contra a mulher. Que, às vezes, vai evoluindo até chegar numa tragédia. Como evitar que isso avance?

É muito importante. Já tivemos casos no DF em que o homem não queria passar pelo grupo. Ele se recusou, pediu no processo direito a ampla defesa, presunção de inocência, e queria primeiro passar pelo processo para lá no final chegar no trabalho. Havia, no entanto, uma ordem de prisão. No caso dele o encaminhamento foi medida cautelar substituindo a prisão. Então conversamos, explicando que se não passasse pelo grupo como medida cautelar, restaria apenas o mandado de prisão. Então é muito mais vantagem passar pelo grupo. Quando a gente fala sobre masculinidade tóxica, temos ideia de achar que o machismo atinge a mulher, mas o homem precisa ter consciência de que isso também o atinge. Quando você diz, por exemplo, “homem que é homem não leva desaforo para casa”, você desafia e impõe a esse homem uma conduta de reação violenta, então ele aprende que, se não reagir quando alguém pisa no pé, ele não é homem, e se ele não é homem, é o quê? Você mexe com a essência da pessoa. Ele aprendeu desde cedo: homem não chora. Ele apanha e os pais dizem para engolir o choro. Se ele engole o choro, ele não dá vazão para a emoção. Se você vai para a psicologia, começa a estudar o que é uma emoção reprimida, as consequências, o desenvolvimento de câncer às vezes, a causa de uma depressão quando ele não consegue viver naqueles padrões. Ele aprendeu que é provedor e não pode deixar a mulher trabalhar, porque, se ela trabalha, ele não está dando conta.

Hoje, se homens e mulheres quiserem entender mais sobre masculinidade tóxica, machismo, violência de gênero, existem órgãos em que a pessoa pode se cadastrar, participar de cursos e palestras para ter essa compreensão?

Existem várias ONGs que trabalham com essas temáticas, universidades trabalham com vários eventos dessa natureza. Nós tivemos recentemente o cine debates. Tivemos um sobre o filme O silêncio dos homens, que está sendo bastante divulgado e aborda justamente essa questão do homem. Como o homem é obrigado a engolir certas coisas para ser macho. Como ele é obrigado a reagir para ser macho. Como ele não pode aceitar certas coisas sem expor o outro a uma violência para que ele seja macho. O homem, para ser macho, é cobrado diariamente. Se o homem chorou, é cobrado porque não é homem. Ele tem que toda hora provar que é homem. Isso é cobrado constantemente pelos homens, pelas mulheres, por todo mundo.