O globo, n.31447, 12/09/2019. Economia, p. 15

 

'Nova CPMF' derruba secretário

Marcello Corrêa 

Geralda Doca

Naira Trindade

Jussara Soares

12/09/2019

 

 

O ministro da Economia, Paulo Guedes, demitiu ontem o secretário especial da Receita Federal, Marcos Cintra —desgastado pela defesa de um imposto sobre movimentações financeiras, nos moldes da CPMF. A exoneração foi um pedido do presidente Jair Bolsonaro, que comentou o assunto em uma rede social: “Paulo Guedes exonerou, a pedido, o chefe da Receita Federal por divergências no projeto da reforma tributária. A recriação da CPMF ou aumento da carga tributária estão fora da reforma tributária por determinação do presidente”.

A gota d’água para a saída de Cintra do governo foi uma apresentação feita na terça-feira pelo seu secretário adjunto, Marcelo de Sousa Silva, com detalhes sobre a proposta da reforma tributária. Durante um seminário em Brasília, o técnico revelou, por exemplo, que o governo apresentaria ao Congresso uma nova CPMF com alíquota de 0,4%. O detalhamento foi interpretado como uma antecipação do anúncio oficial do governo, atropelando Guedes e Bolsonaro.

Segundo o presidente em exercício, Hamilton Mourão, Cintra caiu porque a discussão se tornou “pública demais”, e não devido à proposta em si. Apesar da mensagem de Bolsonaro, Mourão, disse que o presidente não tem uma decisão sobre o imposto:

— Foi decisão do presidente. É a questão do Imposto de Transação Financeira (como o governo se referia à

“nova CPMF”), que o presidente Bolsonaro não tem uma decisão a este respeito. E ele acha que a discussão se tornou pública demais antes de passar por ele.

A possível demissão de Cintra foi discutida por Mourão e Guedes,em um almoço,a convite do ministro, ontem. Até o encontro, a demissão ainda não estava sacramentada, o que só ocorreu após a palavra final de Bolsonaro. De acordo com o presidente em exercício, Guedes demonstrou “angústia” com a situação.

DERROTA PARA GUEDES

Além de ter causado a queda de Cintra, o episódio impôs uma derrota para Guedes. Embora o agora ex-secretário tenha ficado conhecido pela defesa do imposto sobre pagamentos, o ministro também é entusiasta da ideia. Seu plano era substituir a contribuição sobre folha de pagamentos pelo novo tributo. Assim, seria possível reduzir rapidamente o custo para empresas e estimular a geração de empregos.

Desde o governo de transição, no entanto, Guedes buscava ser mais cauteloso ao defender a ideia — ao contrário de Cintra, que é um entusiasta do modelo há pelo menos 30 anos. Nas últimas semanas, no entanto, o ministro tinha resolvido falar mais abertamente sobre a proposta. Em entrevista ao jornal “Valor Econômico” publicada na segunda-feira, estimou que o novo tributo poderia arrecadar R$ 150 bilhões. Antes, há cerca de três semanas,chegou a defender a CPMF original, criada no governo Fernando Henrique Cardoso, e disse que o imposto “funcionou muito bem por 13 anos”.

A estratégia de Guedes parecia ter começado a surtir efeito, ao menos para convencer o presidente. Bolsonaro chegou a admitir que, se houvesse uma compensação para os contribuintes, poderia aceitar a CPMF. Essa possibilidade, porém, foi descartada.

A decisão de ontem expõe as diferenças de pensamento entre o ministro e o presidente, que, desde a campanha eleitoral, se mostrou reticente com várias propostas da agenda de Guedes. Com a ordem expressa de Bolsonaro, a equipe econômica agora avalia opções para traçar um plano B para desonerar a folha de pagamento sem criar um imposto sobre transações.

Segundo fontes da equipe econômica, Guedes disse na segunda-feira, em uma reunião técnica sobre a reforma tributária, que, “se a CPMF caísse, Cintra também cairia”. De acordo com um técnico, o ministro poderá optar por uma desoneração parcial da folha, com corte só para os jovens.

Ao G1, Cintra disse ter havido “um conflito de ideias, incompatibilidade de projetos, de percepções de realidade”. Ele também afirmou esperar que a reforma tributária continue avançando e que ficará “torcendo por esse governo”.

Pivô da crise, o secretário adjunto Marcelo de Sousa Silva deve se manter no cargo, ao menos por enquanto. A Receita será comandada interinamente pelo subsecretário-geral do órgão, José de Assis Ferraz Neto, que acabou de assumir o cargo, por indicação do próprio Cintra. Ferraz Neto estava lotado na Delegacia da Receita Federal em Recife. Auditor-fiscal há 22 anos, já havia comandado a Superintendência de 4ª Região do Fisco.

DEBATE PODE FICAR PARA 2020

Ontem, o ministro da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, disse à GloboNews que a demissão de Cintra deixou claro que o governo não deseja a CPMF:

— O presidente Bolsonaro sempre disse que ele era contra a CPMF, sempre reafirmou essa posição e deixou isso muito claro. O governo tomou uma decisão hoje de dizer de maneira muito clara, através da exoneração do secretário Marcos Cintra, que é um grande técnico, um grande acadêmico, que não deseja a CPMF.

A crise pegou o governo em um momento delicado, em que ainda não apresentou sua proposta de reforma tributária ao Congresso — onde já há dois textos em tramitação. O líder do governo no Senado, Fernando Bezerra (MDB-PE), avaliou que o episódio atrasará o debate, que deve ficar para 2020.

— Reforma tributária é um assunto complexo e dificilmente será deliberado até dezembro. O que se pode alcançar é uma votação na Câmara ou no Senado, e a votação final ficar para o primeiro semestre do próximo ano —afirmou Bezerra.

Bezerra observa, no entanto, que a saída de Cintra pode ajudar o governo, já que o então secretário tinha compromisso com a volta do imposto sobre transações financeiras:

—A saída dele pode sinalizar que o governo esteja reavaliando a proposta que vai encaminhar e não considerar incluir um imposto de transações financeiras.

Apesar da turbulência, parte da proposta continua sendo tocada por técnicos. Ganhou força o plano de propor, num primeiro momento, apenas a unificação do PIS e da Cofins, como mostrou O GLOBO ontem. A estratégia foi detalhada por Sousa Silva, em uma reunião com empresários realizada na tarde de ontem — quando a demissão de Cintra já estava definida. O governo ainda não bateu o martelo se fará a proposta por meio de projeto de lei ou medida provisória.

A fusão de PIS e Cofins resultaria na criação da Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), com alíquota de 11%, com possibilidade de compensações ao longo da cadeia produtiva. Hoje, a carga combinada dos dois tributos é de até 9,25% sobre o faturamento das empresas.

A solução seria mais tímida que a proposta em tramitação na Câmara, que prevê a unificação de cinco impostos, inclusive o ICMS, estadual, e o ISS, municipal. Os parlamentares buscam um acordo com estados e municípios para garantir a manutenção desses tributos regionais, o que criaria o chamado Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), que incidiria sobre o consumo.

“Foi decisão do presidente. (...) Ele acha que a discussão se tornou pública demais antes de passar por ele” _ Hamilton Mourão, presidente em exercício

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Secretário foi atropelado pela própria precipitação

Gustavo Paul 

12/09/2019

 

 

Marcos Cintra, secretário da Receita Federal até o início da tarde de ontem, amigo pessoal do ministro Paulo Guedes, estava no cargo para elaborar mudanças estruturais na área tributária brasileira. Era menos secretário de arrecadação e mais formulador da receita futura. Para isso, dentro de uma reforma tributária ampla, defendia a nova CPMF como forma de arrecadar mais e ampliar a base de arrecadação. Era uma obsessão. No atual governo, encontrou a chance de dar prosseguimento a suas ideias.

Mas Cintra, que já vinha acumulando desgastes no governo desde que assumiu a Receita em janeiro, acabou sendo abatido por avançar demais na defesa do tema, sem que todas as pontas estivessem amarradas. Na prática, quebrou um dos códigos de conduta deste governo —e de outros também. Temas politicamente controversos devem ser tratados com cautela e gradualismo, sempre com aval dos superiores.

Ao autorizar o secretário especial adjunto da Receita Federal, Marcelo de Sousa Silva, a expor detalhes do projeto da “nova CPMF”, ele deu pela primeira vez um tom oficial à medida que ainda estava sendo discutida publicamente como proposta. Nas falas e entrevistas de Paulo Guedes e nos comentários do presidente Jair Bolsonaro, o assunto ainda estava na etapa anterior, era um rascunho. Ontem, em uma apresentação detalhada e bem feita, passou a ser um projeto.

Com isso, o governo se viu engolfado por críticas ao projeto, que voltaram com força total de economistas, analistas e, principalmente, de políticos. Os presidentes do Senado e da Câmara foram veementes em rechaçar o novo imposto. Essa brecha é tudo o que o governo não quer, principalmente por ainda precisar ganhar musculatura política para aprovar temas importantes, como a reforma da Previdência e as indicações do novo procurador-geral da República e do filho-deputado Eduardo Bolsonaro para a embaixada em Washington.

Essa foi a gota d’água para a saída de Cintra: sua posição ficou insustentável. Mas ele cai também pelo conjunto de desgastes acumulados antes mesmo de o governo começar. Em novembro, em um programa de televisão, o então presidente eleito já ameaçava retirá-lo após declarações a favor de “nova CPMF”:

—Parece que tem certas pessoas, se é verdade a informação, que não podem ver uma lâmpada e se comportam como mariposa.

Em abril, Bolsonaro desautorizou publicamente Cintra, que havia sinalizado que a Contribuição Previdenciária (CP), um dos nomes da nova CPMF, iria taxar também as igrejas, ou seja, “fiéis que contribuírem com o dizimo”.

Bolsonaro também acusou a Receita de persegui-lo e a membros de sua família. O presidente da Câmara, Rodrigo Maia, e o ministro do Supremo Tribunal Federal, Alexandre de Moraes, já apresentaram críticas à atuação do órgão. Em agosto, a crise em torno de pontos-chave da Receita Federal, levou a boatos da saída de Cintra, que seria deslocado para um cargo menor, de formulador de propostas tributárias. Cintra caiu pelo conjunto da obra, mas foi responsável por apressar sua saída.