Correio braziliense, n. 20566, 13/09/2019. Mundo, p. 14

 

Risco a paz regional

Rodrigo Craveiro

13/09/2019

 

 

Venezuela » Invocação de tratado sobre assistência militar mútua, por parte dos Estados Unidos, e manobras bélicas próximo ao território da Colômbia elevam a tensão com Caracas. Washington adverte que Nicolás Maduro é uma ameaça à segurança dos vizinhos

Na Venezuela, um presidente ávido em exibir os músculos com manobras militares na fronteira. No território colombiano, um líder indisposto ao diálogo com o vizinho, respaldado pela aliança militar com os Estados Unidos para responder a eventuais agressões. A tensão no extremo norte da América do Sul se intensificou com a divulgação de fotos do líder opositor venezuelano Juan Guaidó com chefes do grupo narcoparamilitar colombiano Los Rastrojos  e com a decisão de Washington de invocar o Tratado Interamericano de Assistência Recíproca (TIAR), documento que prevê assistência militar mútua em caso de ataque lançado do exterior contra uma das partes do acordo. “Recentes movimentos belicosos de mobilização na fronteira com a Colômbia por parte de militares venezuelanos, assim como a presença de grupos ilegais armados e organizações terroristas no território venezuelano, demonstram que Nicolás Maduro não é apenas uma ameaça ao povo venezuelano; suas ações também ameaçam a paz e a segurança dos vizinhos da Venezuela”, declarou o secretário de Estado dos EUA, Mike Pompeo.

Especialistas venezuelanos consultados pelo Correio veem a conjunção de fatores na região — os testes militares e a ativação do TIAR  — como uma ameaça à paz, apesar de admitirem que tanto a Venezuela quanto a Colômbia compreendem os riscos de um confronto armado. Para José Vicente Carrasquero Aumaitre, cientista político da Universidad Simón Bolívar (em Caracas), não é possível descartar a possibilidade de uma escaramuça militar escalar para um conflito mais sério. “O regime de Maduro pode ver tal confrontação como uma chance de reagrupar forças em torno da figura do chefe de Estado. No entanto, ele não avalia os perigos de uma possível ação bélica, que poderia colocar o restante dos países sul-americanos sob o risco de mobilizar suas tropas.”

O diplomata Diego Enrique Arria Salicetti, ex-governador de Caracas e ex-presidente do Conselho de Segurança da ONU, explicou que a presença de “grupos narcoterroristas colombianos” na Venezuela, respaldados por Maduro, é o principal motivo da tensão entre os vizinhos. “Maduro acusou a Colômbia de planejar um atentado terrorista contra ele, de pretender matá-lo e de mobilizar mísseis na fronteira. Os testes militares venezuelanos são uma maneira de demonstrar que ele não teme uma reação armada. Mas Maduro se esquece de que a Colômbia é um sócio global da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) e poderia contar com a ajuda logística dos Estados Unidos”, disse.

Segundo Arria, a guerrilha colombiana Exército de Libertação Nacional (ELN) opera em mais da metade do território venezuelano e extrai diamante e ouro, com o apoio das forças de Maduro. “Agora, os rebeldes das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) entraram na Venezuela, com a anuência de Caracas. Maduro usa a mobilização militar na fronteira como cortina de fumaça e envia um recado à comunidade internacional de que dispõe de recursos bélicos para se defender.”

Ex-diretor de Inteligência do Exército venezuelano, o general Ovidio Poggioli considera correto o gesto do presidente colombiano, Iván Duque, ao não alimentar a retórica do regime venezuelano. “Maduro quer aproveitar a conjuntura para semear um sentimento de identidade nacional, criando um problema cujo único responsável é ele próprio”, analisa. O general destacou que o poder de combate de Bogotá é bastante superior ao de Caracas, cujas forças armadas enfrentam baixíssimo moral e alto índice de deserção. Apesar de classificar como “importante” a ativação do TIAR, Poggioli se mantém cético em relação a uma operação militar na Venezuela. “O máximo que o TIAR fará será estimular sanções da OEA contra a Venezuela.”

Na opinião de Sebastiana Barráez, jornalista especializada em militarismo, em um cenário de guerra, a  Colômbia teria um exército mais bem preparado. “A Venezuela, ainda que melhor equipada militarmente, assiste a um alto índice de deserções nos quartéis.” Ela confirmou que o ELN encontrou terreno fértil para se consolidar na Venezuela e recebe apoio de jovens em troca de compensações financeiras. “As Farc também marcam presença em setores da fronteira, onde supervisionam as aterrissagens de aeronaves carregando produtos do narcotráfico.”

As fotos de Guaidó com John Jairo Durá Contreras e com Albeiro Lobo Quintero, líderes do grupo Los Rastrojos, feitas em 22 defevereiro, em território colombiano, também desataram críticas a Duque pelo apoio ao presidente autoproclamado da Venezuela.

Votação

Doze dos 19 países signatários do Conselho Permanente da OEA votaram a favor da ativação do TIAR: Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, El Salvador, Estados Unidos, Guatemala, Haiti, Honduras, Paraguai, República Dominicana e Venezuela. Costa Rica, Panamá, Peru, Trinidad e Tobago e Uruguai se abstiveram.  Jorge Arreaza, chanceler da Venezuela, denunciou “de maneira categórica a infame decisão de um pequeno grupo de governos da região que, alinhados aos interesses do governo supremacista dos EUA, invocaram a ativação de um nefasto instrumento da história de nosso continente, como o TIAR”.

Ponto crítico

Existe um perigo real de confronto militar entre Venezuela e Colômbia?

SIM

» Sebastiana Barráez

“A tensão entre Venezuela e Colômbia pode aumentar, principalmente na fronteira. Há claras evidências de que os respectivos presidentes Nicolás Maduro e Iván Duque têm posições totalmente distintas e possuem um histórico de agressões verbais. Ambos não apresentam a mínima condição de diálogo. Existe ameaça real, por parte da Venezuela, de uma agressão militar na fronteira com a Colômbia. É possível que se crie uma situação de confronto militar, inclusive por um incidente muito tímido entre os dois exércitos ou por alguma ação de qualquer uma das tropas na fronteira.”

Jornalista das agências Infobae e Punto de Corte, especialista em militares e em fronteiras da Venezuela

NÃO

» General Ovidio Poggioli

“Não creio que haja um risco real de confronto, pois Caracas sabe que o poder de combate é muito inferior. A prontidão operacional na Venezuela está em torno de 30%, quando o mínimo necessário dentro da doutrina militar é de 85%. Isso é uma ameaça por parte de Maduro para que Duque se engaje em uma forte retórica com o vizinho. Não vejo nenhum tipo de possibilidade de enfrentamento militar, pois, logisticamente, a Venezuela não poderia suportar uma guerra. Os Estados Unidos avisaram que vão intervir ante qualquer agressão da Venezuela contra a Colômbia.”

Ex-diretor de Inteligência do Exército venezuelano. Retirou-se das Forças Armadas em 2002 e foi condenado a três anos de prisão pelo crime de rebelião militar

Um pacto pela defesa

O Tratado Interamericano de Assistência Recíproca (TIAR), invocado por Estados Unidos e por vários países pela crise na Venezuela, é um documento herdado da Guerra Fria capaz de legitimar uma intervenção militar. Apesar disso, ele está longe de alcançar unanimidade na América Latina. Firmado em 1947 no Rio de Janeiro, o TIAR prevê uma assistência mútua em caso de ataque militar lançado do exterior contra uma das partes do acordo.

Também chamado de “Pacto do Rio”, ele foi invocado cerca de 20 vezes em 72 anos, mas jamais foi aplicado. A Argentina o invocou em 1982, durante a Guerra das Malvinas contra o Reino Unido, mas os Estados Unidos optaram por apoiar o tradicional aliado na Europa.

Em 2001, quando Washington pediu uma mobilização internacional contra os talibãs no Afeganistão, depois dos atentados de 11 de setembro contra o World Trade Center e o Pentágono, a ajuda militar acionada pelo TIAR foi afastada por uma parte da América Latina, liderada por Chile e México.

“O fato de nunca ter sido aplicado é um sinal de fraqueza mais do que de força para invocá-lo no caso da Venezuela. Mostra a divisão na América Latina”, disse à agência France-Presse Guillaume Long, pesquisador associado do Instituto de Relações Internacionais e Estratégicas de Paris e chanceler equatoriano em 2016 e 2017. Para o pesquisador, “isso mostra que os países latino-americanos não têm verdadeiramente o desejo de um conflito militar na região”.

O México se retirou do TIAR em 2004. Em 2012, o mesmo foi feito por Bolívia, Equador, Nicarágua, na época sob governos de esquerda, denunciando-o como um instrumento de influência americana na região. Por sua vez, a Venezuela concretizou sua  saída em 2015. No entanto, em julho passado, a Assembleia Nacional venezuelana, liderada pelo opositor Juan Guaidó, aprovou o seu retorno — decisão anulada pela Suprema Corte, aliada do regime de Nicolás Maduro.