Valor econômico, v.20, n.4959, 13/03/2020. Especial, p. A12

 

Entrevista - Armínio Fraga

Sérgio Lamucci

13/03/2020

 

 

O ex-presidente do Banco Central (BC) Arminio Fraga vê o risco de um crescimento da economia brasileira próximo a 1% ou até menos neste ano, “num mundo de tanta incerteza”. Segundo ele, “o choque de oferta produzido pela crise do coronavírus é recessivo, e a incerteza é paralisante”. Boa parte das projeções está hoje na casa de 1,5%. “Se você me prometer 1,5% agora eu fecho. Aceito”, diz Arminio, sócio da Gávea Investimentos.

Além do cenário externo, ele destaca o impacto negativo de fatores domésticos, como os conflitos do governo de Jair Bolsonaro com o Legislativo, o Judiciário, a imprensa e as minorias, citando também os problemas da política ambiental e a dificuldade de se avançar na agenda econômica. Na sua visão, o quadro internacional tem mais peso para explicar o mau desempenho dos mercados, como o de câmbio e o de ações. “Para o nível de atividade e o investimento, dou mais peso aos fatores domésticos”, de no mínimo dois terços, diz ele.

No caso do Brasil, como sempre, os desafios maiores estão aqui dentro. Não há como negar”

Dadas as restrições das contas públicas, Arminio não vê espaço para o governo investir mais neste momento. A sua recomendação é abrir espaço para o investimento público por meio de reformas e pela eliminação de subsídios. E é o caso de usar mais intensamente o BNDES? “Fala-se hoje em usar os bancos públicos de um modo anticíclico. Isso faz sentido dentro de certos limites”, diz Arminio. “Na área monetária, o BC vem explorando os limites do possível, eu diria com sucesso até a última semana, mas existem limites.” A seguir, os principais trechos da entrevista.

Valor: Qual o impacto do coronavírus sobre a economia global? Vai haver recessão mundial?

Todos os sinais de quem estima até onde esse vírus vai sugerem que haverá impacto significativo, ainda que haja muita dúvida sobre quão profundo e quanto tempo dura essa pandemia. O melhor cenário é um em que se posterga a incidência, de modo a não sobrecarregar a capacidade hospitalar mundo afora. Há também alguma esperança, embora cadente, que o número de pessoas contaminadas fique razoavelmente limitado. Você vê o próprio governo da Alemanha falando em 70% da população. As estimativas são muito variadas, mas uma estimativa do governo alemão em geral se leva a sério e assusta. É inevitável que haja impacto sobre a atividade tanto do ponto de vista da demanda quanto da oferta. Esse tipo de ocorrência assusta e deprime a demanda. Do ponto de vista da oferta, impacta a capacidade de as pessoas trabalharem, o que por sua vez tem implicações para as cadeias produtivas em toda parte. E isso ocorre em cima de uma economia global que já vinha meio balançada, decepcionando um pouco, com a ideia de fim de ciclo, muito afetada pela guerra comercial entre EUA e China. Esse vírus vem num momento que já era de incerteza por si só.

Valor: É inevitável uma recessão global, ainda que rápida?

Arminio: Sim. O melhor cenário é que seja algo transitório e ao final as coisas voltem ao normal. Mas os processos econômicos têm elementos dinâmicos que nunca conseguimos prever com muita precisão. Isso depende muito da resposta dos vários governos também. De qualquer forma, é impossível não imaginar uma desaceleração, até mesmo uma recessão.

Valor: O que as autoridades globais, em especial dos países desenvolvidos, podem fazer nesse cenário? Cortar mais juros? Usar política fiscal?

Arminio: Primeiro, tem se mostrado muito difícil a coordenação de qualquer coisa. Pense no que está ocorrendo com os assuntos climáticos. O que pode ocorrer é uma resposta simultânea em várias frentes. Na política monetária, não há muito espaço, porque os juros estão muito baixos. Quando os juros dos títulos de dez anos do Tesouro americanos estão em 0,8% e a taxa de dez anos da Alemanha está negativa em 0,75%, o afrouxamento quantitativo não vai ter muito impacto. Mas com juros muito baixos os governos têm mais espaço para se endividar e a política fiscal se torna a melhor opção (para quem tem crédito na praça!).

Valor: O que fazer do lado fiscal?

Arminio: Há duas dimensões. Uma mais focada nos impactos diretos do vírus, como emergências no mundo da saúde e de caráter social ligadas a esse assunto. E outras poderiam ser oportunidades para investir. Imagino que os governos vão começar a anunciar esse tipo de resposta. Em tese, com juro baixo, a maioria das economias maduras vai poder expandir. A Itália nem tanto. O prêmio de risco do país subiu muito. Ela precisou de uma ajuda firme do Banco Central Europeu [BCE].

Valor: Em que medida o tombo dos preços do petróleo agravou a crise?

Arminio: Há aí também duas dimensões. Uma queda do preço de petróleo é um choque de oferta positivo para o mundo. No entanto, para alguns países em que o setor de petróleo é importante, como nos EUA, a queda do petróleo tem uma dimensão negativa. Se for para a Turquia ou para o Japão, é inequivocamente bom. Para os EUA, é ruim, para a Europa, talvez seja bom. No geral, causou algum tumulto. Contribuiu para a crise neste momento.

Valor: E para o Brasil, é liquidamente positivo ou negativo, agora que o país exporta muito mais petróleo?

Arminio: Negativo, mas é um pouco de achismo da minha parte.

Valor: Quais são os principais efeitos para a economia brasileira desse cenário externo mais adverso e por quais canais eles operam?

Arminio: Para o Brasil, está ocorrendo alguma perda de relações de troca, incluindo o petróleo na conta e as demais commodities. E há um arrefecimento da economia global, que também nos pega. O aumento da aversão ao risco prejudica. Como consequência, já se vê um aumento relevante do CDS, do spread de crédito do Brasil, agravando um quadro de muita frustração com o crescimento. Mas, no caso do Brasil, como sempre, os desafios maiores estão aqui dentro. Não há como negar.

Valor: O câmbio e a bolsa estão sofrendo muito aqui dentro. Qual é parte global e qual é devido a questões internas brasileiras?

Arminio: Para os mercados, a parte global tem mais peso que as questões locais. Houve um colapso das bolsas no mundo inteiro, os spreads de crédito estão aumentando, em especial os de risco mais alto [chamados high yield]. Para o nível de atividade e o investimento, dou mais peso aos fatores domésticos - e incluiria aí, como eu tenho procurado comentar há bastante tempo, o lado político também. Do lado da economia, o peso desses fatores é de no mínimo dois terços. A agenda econômica agradou inicialmente aos mercados, mas tem sido difícil avançar na reforma tributária e na reforma administrativa, dois grandes temas que estão superatrasados. Há receio de que uma janela de oportunidade tenha sido perdida. E existe também um ruído maior que emana do governo em várias áreas e cria estresse, algo bastante óbvio a essa altura. Vivemos em um ambiente tenso...

Valor: O sr. se refere aos conflitos do Executivo com o Legislativo e com o Judiciário?

Arminio: Sim, com o Legislativo, com o Judiciário, com a imprensa, com minorias de vários setores. É uma sensação bastante estressante, que atenta sim contra a qualidade da nossa democracia. Pode não ser uma visão unânime, mas que está sendo crescentemente aceita. A nossa democracia está sendo testada, não há a menor dúvida.

Valor: Isso está afetando o crescimento e o investimento?

Arminio: Com certeza. Eu não mencionei na lista, mas um bom exemplo diz respeito à postura do governo em relação ao meio ambiente, que depõe contra o país mundo afora e afasta nossos parceiros. Essa é que é a verdade.

Valor: O que o Brasil deve fazer nesse cenário atual?

Arminio: Na área monetária, o BC vem explorando os limites do possível, eu diria com sucesso até a última semana, mas existem limites. Na área fiscal, os limites são ainda mais apertados, porque o Brasil vem há vários anos com déficit primário, com a dívida crescendo. Gastos temporários para uma emergência temporária são absolutamente justificados, mas o resto...

Valor: Abrir um crédito extraordinário para despesas com saúde?

Arminio: Com certeza. Isso sim. Não há dúvida que isso precisa ocorrer. É diferente do que representam os R$ 20 bilhões por ano que estão estimando ligados à derrubada do veto relacionado à questão do BPC [Benefício de Prestação Continuada], que são permanentes. Para um país que mergulhou no precipício porque descarrilhou no fiscal, eu tenho dificuldade em acreditar que [estímulos fiscais] sejam a solução para o problema. É claro que o governo deveria estar investindo mais, especialmente em áreas sociais como educação e saúde. Mas para isso tem que liberar recursos com mais reforma da Previdência, com a reforma do funcionalismo e eliminando uma série de subsídios. Assim seria possível estimular o crescimento e ao mesmo tempo para reduzir as desigualdades e aumentar as oportunidades.

Valor: Abrir espaço para o governo investir via reformas, não aumentar investimento público neste momento?

Arminio: Exatamente. Seria a minha recomendação.

Valor: É o caso de aumentar a atuação do BNDES?

Arminio: Eu sempre advoguei no caso de bancos públicos que se tenha critérios claros e, que se avalie de um modo transparente o que é feito. Fala-se hoje em usar os bancos públicos de um modo anticíclico. Isso faz sentido dentro de certos limites. Não faz sentido como no passado fingir que o país está sempre precisando de expansão do crédito público, como se não houvesse ciclos - pé na tábua o tempo todo.

Valor: Faz sentido reforçar capital de giro para empresas nesse período em que pode haver queda de receita abrupta por algumas semanas?

Arminio: A pergunta é: por que o sistema financeiro não faz isso por conta própria? Os bancos em geral tendem a alongar os prazos e renegociar dívidas em momentos de crise. Isso é prática corriqueira para banco. Para o BNDES eu vejo situações em que se lida com bens públicos e algum espaço nessa área sempre vai existir. Eu jamais imaginei fechar o BNDES, mas ele precisa fazer com dinheiro público coisas de interesse público.

Valor: Em que medida o conflito entre poderes preocupa o sr.? O presidente chegou a convocar a população para as manifestações do domingo e o Congresso derrubou o veto de Bolsonaro na questão do BPC.

Arminio: O conflito entre poderes é da natureza da coisa. O equilíbrio entre eles significa que os poderes vão se fiscalizar, discutir e negociar. O problema é quando a coisa começa a atingir níveis disfuncionais, inclusive com inversões de papel. Em vários momentos da nossa história recente, a temperatura esquentou além do que seria normal, e isso preocupa. O Congresso está fazendo a sua parte. Essa derrapada fiscal recente eu avalio como algo muito mais político, uma briga de poderes, mas foi um desvio de rota para o Congresso, que vinha num ritmo de discussão e aprovação de reformas absolutamente louvável.

Valor: Há uma crise institucional em curso ou é exagero?

Arminio: Se os cientistas políticos lerem esta entrevista até o fim, talvez se zanguem comigo, mas acho que os contornos de uma crise institucional existem, mas não vejo ainda uma crise plena.

Valor: O sr. vê o risco de uma recessão no Brasil no primeiro semestre?

Arminio: Há algum risco de recessão, definida de modo usual como dois trimestres seguidos de queda. Mas é muito difícil prever essas coisas.

Valor: Boa parte das projeções caminhou para a casa de 1,5% neste ano. Na virada do ano, havia quem projetasse mais de 2,5%. Hoje 1,5% parece um crescimento razoável?

Arminio: Se você me prometer 1,5% agora eu fecho. Aceito [risos].

Valor: Pode ser menos, mais próximo de 1%?

Arminio: Pode, num mundo de tanta incerteza. O choque de oferta produzido pelo crise do coronavírus é recessivo, e a incerteza é paralisante. Nós estamos com uma distribuição de possibilidades muito achatada, infelizmente com pouco peso no lado positivo.

Valor: Então um crescimento perto de 1% é possível?

Arminio: Sim. E menos também.

Valor: O ideal seria o governo diminuir ruídos e insistir em reformas?

Arminio: Exato. Mas é um ideal complicado. É razoável esperar isso de um governo que, em 15 meses, mostrou o que mostrou? Tomara, mas não é a minha expectativa. Eu ando mais para negativo já há algum tempo em função disso.