O globo, n.31635, 18/03/2020. Opinião, p. 2

 

A realidade se impõe

Merval Pereira

18/03/2020

 

 

O presidente Bolsonaro teve que abandonara retórica irresponsável sobre a gravidade da crise do novo coronavírus, devido às evidências em escala mundial. A preocupante lentidão do governo federal nas ações de combate ao coronavírus foi quebrada ontem coma decretação doestado de calamidade pública. Só segunda feira foi montado o gabinete de crise, que se reunirá hoje já sob o novo espírito, o que deveria ter sido feito há pelo menos 15 dias. Diversas medidas emergenciais continuam em estudo, espera-seque hoje, depois da primeira reunião do grupo, sejam anunciadas.

O ministro Paulo Guedes anunciou uma série de medidas, mas falta muita coisa, inclusive para guiar os Executivos estaduais, que, na parte relativa à sociedade, estão muito mais avançados. Por isso, Bolsonaro diz que as medidas tomadas pelos governadores prejudicarão a economia, como fosse possível reativara economias ema ação do governo federal de compensação aos pequenos e microempresários.

Também as grandes empresas precisarão de estímulos para enfrentar acrise, que já está fazendo com que previsões de recessão este ano no país se generalizem entre os agentes econômicos.

O presidente da República deveria estar à frente dessa ação, não apenas fisicamente, mas como símbolo da cidadania que terá que suportar sacrifícios do distanciamento social. Bolsonaro, ao contrário, diz que tudo não passa de um complô para acabar coma economia e como governo.

Daqui apouco teremos um país trancado em casa, e ocida dão precisará de um líder para animá-lo, parada ruma visão de futuro. Enquanto acrises e agrava, o presidente anuncia publicamente quedará duas “festinhas” particulares na próxima semana, para comemorar seu aniversário e de sua mulher.

Exemplar da diferença entre seus pares, um vídeo que circula nas redes sociais mostra como diversos chefes de governo reagiram, começando por Donald Trump, ídolo de Bolsonaro, que soube colocar o GPS para recalcular seu itinerário político quando viu que menosprezar o coronavírus colocava sua reeleição em xeque.

Trump, cercado de autoridades civis e militares, declarou “emergência nacional” nos Estados Unidos para combatera epidemia. O primeiro-ministro Boris Johnson, do Reino Unido, disse que esta é a“a pior crise de saúde pública de uma geração”. A chanceler Angela Merkel ressaltou a possibilidade de que até “70% da população da Alemanha” serão contaminados pelo novo coronavírus.

Na França, o presidente Emmanuel Macron classificou a situação como “a mais grave crise sanitária que atingiu a França em um século”. No Japão, o primeiro-ministro Shinzo Abe avisou que o governo não hesitará em tomar “medidas duras” para protegera saúde dos cidadãos.

Já o presidente Bolsonaro continuava até ontem a classificar de“histeria” areaçãoà crise, e se dedica a picuinhas menores. O ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, que vem tendo uma atuação competente na gestão das ações de saúde pública, encontra obstáculos desde o primeiro momento da crise devido a questões políticas.

Mandetta teve que pedir permissão a Bolsonaro para encontrar-se com o governador de São Paulo, João Doria, numa atividade pública sobre o coronavírus. Mesmo assim, Bolsonaro não gostou. Agora mesmo, por ter ido ao Supremo Tribunal Federal (STF) a convite do ministro Dias Toffoli, para uma reunião com os presidentes da Câmara e Senado, Madettatev eques e explicara Bolsonaro.

Talvez por isso ele não tenha colocado o ministro da Saúde como coordenador do gabinete de crise, dando a tarefa para oche fedo Gabinete Civil, general Braga Net to. Embora esteja deixando seu lado médico prevalecer, o ministro Luiz Henrique Mandetta é deputado federal e tem jogo de cintura para escapar de armadilhas.

Saiu-se bem quando teve que enfrentar questionamentos sobre o comportamento do presidente Bolsonaro ao apertar as mãos de simpatizantes, e conseguiu convencê-loam antera proibição dos cruzeiros marítimos de entrarem no país, para cont era Covid-19.

Bolso na rojá tem um conselhe irona área, o diretor presidente indica dopara a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), contra-almirante Antonio Barra Torres, que filmou toda a participação do presidente na manifestação de domingo. Ele tem posição divergente à do ministro Mandetta, e defende que não são necessárias medidas drásticas para enfrentar a crise.