O globo, n.31635, 18/03/2020. Especial Coronavírus, p. 20

 

Uma quarentena virtual

Emiliano Urbim

18/03/2020

 

 

Em meio a tantas mudanças nesses tempos de epidemia, Daniel Palatnik, 9 anos, viveu uma na tarde de ontem. Por volta das 14h30, como de costume, ele fez um lanche acompanhado dos colegas do colégio. Mas, pela primeira vez, cada um estava em sua casa. A conference call do 4º ano da Escola Sá Pereira, em Botafogo, foi uma iniciativa da mãe de Daniel, a advogada Olivia Fürst — a turma utilizou o Zoom, aplicativo normalmente utilizado em reuniões corporativas.

— Como advogada colaborativa, trabalho com gestão de crises e facilitação de diálogo. Meu lado profissional ajuda nesta nova rotina pessoal, seja marcando chamadas de vídeo com amigos e parentes ou estimulando a conversa das crianças.

Agarrar-se a hábitos (novos e antigos) tem sido um alívio em meio à pandemia global. A ideia é manter a rotina — parcial, virtual, diferente, mas rotina. À distância, colegas se reúnem para colocar em dia o trabalho —e a fofoca. Ratos de academia recorrem a aplicativos para continuar treinando. Professores transferem aulas presenciais para as redes sociais. Bandas seguem ensaiando: os músicos tocam simultaneamente, cada um no seu estúdio caseiro. E tem até amigos se encontrando online para manter vivas as noites de carteado.

Olivia está com os dois filhos em casa desde sextafeira — além de Daniel, Sofia, de 14 anos. A advogada não tem dúvidas de que é importante manter o convívio da turma do colégio durante a quarentena anti-Covid-19. Está em produção, inclusive, uma mostra coletiva de desenhos via WhatsApp com o tema “qual a cara do coronavírus?”

Excitadas por rever os colegas após “tanto tempo” — a última aula foi sexta-feira passada —as crianças consideraram a reunião produtiva: Daniel mostrou seu chihuahua, Pipo; alguns fizeram questão de ressaltar que estão participando das atividades domésticas; a máscara cirúrgica de uma menina foi elogiada como “um charme”. A ideia é repetir o encontro todos os dias.

— Essa crise deixa explícito que existe uma necessidade básica do ser humano de estar conectado — diz Olivia, que planeja lives sobre gestão de conflitos direcionadas a famílias que agora vão passar mais horas sob o mesmo teto.

— Não basta escrever, postar, mandar zap, telefone. A gente percebe a falta que faz ver o outro, a expressão, o olhar.

VÁLVULA DE ESCAPE

Em São Paulo, o Estúdio Anacã Corpo Movimento, de Ana Maria Diniz, suspendeu suas aulas no sábado. Desde então, a escola tem postado aulas para os clientes na plataforma InPulse. Em uma delas, Luyz Baldijão, professor de sapateado, dá dicas para quem precisar praticar descalço, sem incomodar vizinhos “quarentenados”. Dá para ensinar isso em vídeo?

— No mundo dá pra fazer de tudo, basta achar um meio — resume Baldijão — Boa parte dos alunos vem à aula de dança buscando esquecer dos problemas. É fundamental manter essa válvula de escape.

O coronavírus também provocou uma mudança na rotina de um restaurante em Botafogo. Aberto em 2018, o Cru Natural Wine Bar nunca trabalhou com entregas — a ideia dos proprietários Dominic e Selene Parry era justamente promover o convívio e o senso de comunidade. Desde ontem, no entanto, o Cru trabalha só com delivery —e o “senso de comunidade” será cultivado nas redes.

— Não queríamos deixar nossos fornecedores, funcionários e clientes na mão. Há toda uma cadeia que não pode se romper — diz Selene, grávida de nove meses e já afastada do restaurante.

— Não sei até quando sustentaremos esse esquema. Mas vamos em frente. A gente está tentando não pirar.

Academias de ginástica do Rio de Janeiro fecharão as portas a partir de hoje, seguindo recomendação do governador Wilson Witzel, que consta no decreto n° 46.973, publicado na manhã de ontem. Uma saída encontrada por muitos frequentadores é o uso de aplicativo visando manter a prática de exercícios; a BodyTech, rede de academias que anunciou fechamento de suas filiais pelo período de 15 dias, disponibiliza em seu aplicativo BTFIT uma série de métodos diferentes para manter o isolamento recomendado pelas autoridades e não perder a rotina de treinos.

A atriz e estudante de nutrição Isadora Pereira, 27 anos, diz que há uma década é frequentadora assídua de academia. Antes mesmo da Covid-19, ela já utilizava aplicativo durante viagens “para não descuidar”:

— Sou de Santa Catarina. Quando viajo para lá, não vou à academia, mas acompanho as aulas e as séries de treino que já tenho no aplicativo. Agora, com a necessidade de se proteger do vírus, é mais uma ajuda — comentou Isadora.

A assessoria da BodyTech informou que somente os gestores estarão na unidade para tirar dúvidas. Funcionários ficarão em casa. Outra grande rede de academias, a SmartFit informou em nota que suspenderá suas atividades por tempo indeterminado.

Enquanto o número de infectados com o novo coronavírus no Brasil aumenta, as restrições de deslocamento enrijecem e, com isso, até mesmo velórios se adaptam à quarentena. O Cemitério da Penitência, no Caju, na Zona Norte do Rio, já está oferecendo a cerimônia pela internet. No Rio, o Cemitério da Penitência avisou que o esquema de velório online estará disponível pelos próximos 30 dias.