Correio braziliense, n. 20757, 22/03/2020. Mundo, p. 13

 

Tempo de tréguas?

22/03/2020

 

 

Com boa parte do mundo com as atenções e os esforços voltados para conter o avanço da pandemia da Covid-19, há dúvidas sobre o que vai acontecer com questões que provocam reações contrárias entre as nações, como os conflitos regionais e as gerras civis. Não há consenso entre especialistas sobre a adoção de tréguas. Eles se dividem quanto à possibilidade de esses enfrentamentos se intensificarem ou de diminuírem.

Segundo Bertrand Badie, professor do Instituto de Estudos Políticos de Paris, para guerrilhas ou grupos extremistas, “o ganho é evidente”. Em entrevista a agência France-Presse (AFP), o especialista argumenta que, em uma “lógica de poder que se torna impotente”, é possível ver “a revanche da fraqueza sobre a força”.
Nos últimos dias, por exemplo, cerca de 30 soldados malinenses foram mortos em um ataque atribuído a jihadistas no norte do Mali sem provocar uma reação do Conselho de Segurança. Na região síria de Idlib e na Líbia, objeto de atenções da Organização das Nações Unidas (ONU) antes do avanço do coronavírus, os combates continuam. Na noite de sexta-feira, a Coreia do Norte disparou dois mísseis balísticos de curto alcance em direção ao Mar do Japão, também conhecido como Mar do Leste, segundo a agência de notícias Yonhap.
Presidente do centro de análise do International Crisis Group, com sede em Washington, nos Estados Unidos, Robert Malley acredita que os ânimos serão acalmados. “Lançar suas tropas ao combate exporá Estados e grupos insurgentes ao contágio e, portanto, à perda de vidas”, justifica. Segundo ele, “o vírus certamente diminuirá a capacidade e a vontade dos Estados e do sistema internacional, como ONU, organizações regionais, de refugiados, forças de manutenção da paz, de dedicação na resolução ou prevenção de conflitos”.
O especialista aponta ainda que questões econômicas e políticas forçam líderes a recuarem. “Que governo vai querer investir na busca pela paz no Iêmen, na Síria, no Afeganistão, no Sahel ou em outro lugar quando enfrenta uma crise econômica, política e social quase sem precedentes?”, pontua à AFP. Para Robert Malley, com a atenção da mídia focada na pandemia, “esses conflitos, por mais brutais e violentos que sejam, serão imperceptíveis e inaudíveis para muitos”.
Diplomatas
Na ONU, os diplomatas asseguram que a situação dos países em crise segue sendo monitorada. “A Covid-19 é a principal questão global, mas não esquecemos a Síria, a Líbia, o Iêmen”, escreveu no Twitter, o embaixador britânico na ONU, Jonathan Allen. “Velamos para que o Conselho de Segurança desempenhe seu papel vital na manutenção da paz e da segurança no mundo”, prosseguiu.
Richard Gowan, especialista das Nações Unidas, questiona a viabilidade dessa posição. “Diplomatas do Conselho de Segurança dizem que é difícil para eles manter suas capitais focadas nos assuntos da ONU”. Existe uma preocupação crescente entre organizações não governamentais e de defesa dos direitos humanos, como Human Rights Watch, de que os conflitos sejam negligenciados.
Além disso, o avanço do vírus em países em conflitos, muitos deles pobres, pode ter consequências devastadoras para a população. A ONU teme a ocorrência de “milhões” de mortos. Em comunicado divulgado recentemente, a organização conclamou que, “enquanto o mundo luta contra a pandemia, as partes (em guerra) devem parar de se enfrentar para garantir que a população não corra riscos maiores.”
“Que governo vai querer investir na busca pela paz no Iêmen, na Síria, no Afeganistão, no Sahel ou em outro lugar quando enfrenta uma crise econômica, política e social quase sem precedentes?”
Robert Malley,
presidente do centro de análise do International Crisis Group

___________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________

Migrantes vulneráveis

22/03/2020

 

 

A interrupção dos programas de acolhimento, a suspensão dos trâmites de asilo e os isolamentos obrigatórios na Europa têm deixado migrantes em uma situação ainda mais vulnerável. A Alemanha adotou medidas de quarentena nos centros de acolhimento em decorrência do registro de vários casos de contágio em refugiados. Voluntários e organização não governamentais, porém, têm alertado que essas populações estão abandonadas à própria sorte.

“Como manter a distância em quartos minúsculos e compartilhando banheiros e cozinha? (…) As crianças continuam correndo nos corredores”, contou à agência France-Presse de notícias (AFP) uma voluntária que se encarrega de várias famílias afegãs em um centro no nordeste de Berlim. “Há desinfetante para as mãos na entrada, mas nada mais”, acrescentou mulher, identificada como Sophia.
Na França, há cada vez menos voluntários em Calais (norte), onde se encontram cerca de 2 mil migrantes. A distribuição de comida não acontece mais.“Se o vírus se propaga em um campo de refugiados, será um desastre”, alerta Antoine Nehr da ONG Utopia 56.