Correio braziliense, n. 20760 , 25/03/2020. Artigos, p.11

 

Medidas econômicas de combate à crise

Armando Castelar

25/03/2020

 

 

O Covid-19 chegou ao Brasil com cerca de quatro semanas de defasagem em relação à Europa e aos EUA, mas com a mesma força. Nas duas últimas semanas, o número de casos diagnosticados aumentou à taxa de 34,6% ao dia, acumulando 1924 casos até a segunda-feira, sem dar sinais de arrefecimento. O quadro é preocupante: se não conseguirmos desacelerar o processo, ainda em abril teremos mais de 1 milhão de brasileiros contaminados, com o sistema de saúde abarrotado de pacientes graves e as mortes sendo contadas aos milhares.
 
A quarentena se mostrou até aqui a forma mais eficaz de impedir a disseminação do vírus, mas ela tem consequências econômicas pesadas, que se somam às que resultam da decisão voluntária de evitar certos locais, como restaurantes, cinemas e shopping centers. Não foi à toa que os governos mundo afora hesitaram em instituí-la, o que em geral acabou resultando em avanço maior da epidemia do que de outra forma teria sido necessário.
 
O tamanho do choque sobre a economia será não trivial: em vez da expansão que se esperava até um mês atrás, agora se espera forte contração do PIB no segundo trimestre deste ano. O governo estima que o PIB de 2020 ficará no mesmo patamar de 2019, mas hoje em dia um cenário de queda me parece mais plausível. Isso vai ajudar a derrubar ainda mais a inflação e a reduzir o deficit externo do país, mas, em compensação, as receitas tributárias vão cair muito e o desemprego subirá bastante.
 
O perfil da recessão esperada para este ano será diferente do de outras que tivemos nas últimas décadas: ela afetará bem mais o setor de serviços, como confirmam dados divulgados esta semana para Austrália, Japão e Europa. A contração de serviços derrubará o emprego, em especial de trabalhadores menos qualificados. O drama social que vai daí advir poderá ser bem grave.
 
Esse quadro, na minha visão, acaba com a pequena chance que ainda havia para a aprovação de reformas antes do recesso parlamentar de julho e das eleições municipais de outubro. Os desafios colocados para a política econômica agora são outros e não triviais.
 
A curto prazo, o governo precisa criar uma rede de segurança para proteger as empresas e famílias que forem mais afetadas, ficando sem receitas e rendimentos, e que não tenham como se sustentar com suas reservas. É o caso, em especial, das micro, pequenas e médias empresas e dos trabalhadores de baixa renda, em particular os informais, que não contam com a proteção de programas como o seguro desemprego. A própria viabilidade da quarentena vai depender, na prática, da criação dessa rede de proteção social, pois sem ela muita gente pode decidir simplesmente sair às ruas do mesmo jeito para garantir o sustento de algum jeito.
  
Ainda a curto prazo, o governo precisa garantir o bom funcionamento dos mercados, em especial do financeiro, já que a tendência natural neste momento é todos protegerem seu caixa. Isso em geral significa problemas para bancos e fundos de investimento e pode levar a que certos mercados não funcionem bem, como o de dólar e de títulos de dívida corporativa, por exemplo.
 
Por fim, o governo precisa adotar medidas de estímulo para compensar o efeito depressivo das quarentenas, voluntárias e obrigatórias. Nesse caso, há uma discussão relevante do momento certo de dar os estímulos. Fazer isso em momento de grande retração de consumidores e empresas pode dar pouco resultado.
 
Por seu lado, a pressão por pacotes maiores, em especial de gastos públicos, vai aumentar conforme a crise na saúde pública avança. É o que se viu nos EUA e na Alemanha, por exemplo: o volume de gastos previstos foi se multiplicando ao longo da semana, conforme os políticos reagiam à pressão dos eleitores.
 
O governo também terá um grande desafio para decidir quando e como começar a reverter a quarentena e normalizar o funcionamento das empresas. O governo federal terá incentivo para fazer isso cedo, pois o desempenho da economia influencia mais na popularidade presidencial do que a de outros políticos. Os governadores e prefeitos, por seu lado, estarão mais preocupados com a pressão que a epidemia coloca sobre os serviços de saúde.
 

ARMANDO CASTELAR

COORDENADOR DE ECONOMIA  DO IBRE/FGV E PROFESSOR DO IE/UFRG 

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Renda universal pró-emprego: solução para salvar vidas e a economia

Arnaldo Lima

25/03/2020

 

 

Graves crises geram grandes desafios e oportunidades. Se a crise de 2008 deixou claro que salvar os bancos era vital para que a colapso financeiro não afetasse a economia de forma permanente, consubstanciado na expressão too big to fail, a pandemia causada pelo coronavírus também evidencia que não podemos deixar as pessoas morrerem ou perderem os empregos por causa de um choque econômico temporário. A Grande Depressão de 1929 também nos trouxe outro ensinamento importante para fins de políticas públicas: os Programas de Proteção ao Emprego (PPE), também conhecidos em inglês como work-sharing ou short-time work.
 
Os PPEs são arranjos institucionais que podem permitir a compensação salarial, total ou parcial, pelo governo com o objetivo de: i) possibilitar a preservação dos empregos em momentos de retração da atividade econômica; ii) favorecer a recuperação econômico-financeira das empresas; iii) sustentar a demanda agregada durante momentos de adversidade para facilitar a recuperação da economia; iv) estimular a produtividade do trabalho por meio do aumento da duração do vínculo empregatício; e v) aperfeiçoar as relações de trabalho.
 
Sendo assim, os PPEs podem beneficiar trabalhadores, empregadores e governo. Para os trabalhadores, preservam os empregos e os seus rendimentos. Para as empresas, permitem ajustar o fluxo de produção à demanda e evitam a perda de capital humano, reduzindo os custos de demissão e recontratação. Para o governo, reduzem as despesas com o seguro-desemprego ao mesmo tempo que preserva parte da arrecadação.
Não há dúvidas de que o isolamento social é determinante para reduzirmos o grau de transmissibilidade da Covid-19 e, assim, evitarmos o colapso do sistema de saúde, o que poderia condenar à morte milhares de brasileiros, especialmente os mais idosos. Da mesma forma, não há como fazer um shutdown em todas as atividades econômicas, sob pena de impedir a logística dos profissionais de saúde, equipamentos médicos, remédios, vacinas e comida, o que poderia gerar uma convulsão social.
 
Assim como os bancos centrais são emprestadores de última instância ao dispor de instrumentos de política monetária que garantem a estabilidade do sistema financeiro, o Estado também pode atuar como compensador salarial temporário de última instância para garantir que o nosso isolamento social de 4-6 meses não produza efeitos negativos duradouros sobre a economia. A Lei nº 13.189, de 2015, criou o PPE no Brasil. Contudo, essa legislação não está mais em vigor. Não se trata aqui de dizer que essa lei nos salvará de todas as adversidades que nos assolam neste momento. Nova proposta legislativa deveria criar uma renda universal pró-emprego, levando em conta a condição laboral dos trabalhadores, inclusive os informais, que estão impedidos de exercer a profissão, similar ao que acontece com os pescadores artesanais em períodos de defeso.
 
O maior desafio de toda política pública são as regras de elegibilidade. Dessa forma, deve-se evitar que as demissões sejam apenas postergadas e que o custo fiscal prejudique a estabilização macroeconômica de médio prazo, o que poderia gerar temor sobre a trajetória da nossa dívida pública, proporcionando outra crise. Faz-se necessário, portanto, criar outra fonte de custeio para atenuar os impactos sobre as contas públicas.
 
Alternativa viável seria instituir uma contribuição social vinculada à renda futura, arcabouço defendido pelo pesquisador Paulo Meyer, do Ipea. Aplicada ao novo programa pró-emprego, trabalhadores e empresas entrariam sem pagar nada. Contudo, no futuro teriam que restituir ao Tesouro, ainda que parcialmente e à medida que as rendas e receitas permitissem, os valores recebidos durante a crise. É uma aplicação que a literatura econômica chama de financiamentos com pagamentos vinculados à renda. Milton Friedman concebeu a ideia original na década de 50 e Joseph Stiglitz a vê hoje como grande inovação social que transcende o financiamento do ensino superior, área para qual foi inicialmente pensada e já testada com sucesso na Austrália e Inglaterra.