O Globo, n.31641, 24/03/2020. Artigos, p. 2
Comédia de erros
Merval Pereira
24/03/2020
O presidente Bolsonaro tem culpa de não ter lido o texto da medida provisória que permitia às empresas suspender por até quatro meses os contratos trabalhistas, sem necessidade de pagar o salário desse período.
Quando se deu conta do estrago que a decisão faria, com trabalhadores em casa sem o salário para sustentar a família, suspendeu a medida provisória que havia promulgado na noite de domingo e até a manhã de ontem defendia.
Mas na defesa, Bolsonaro mostrou que a ideia era outra: “Ao contrário do que espalham, (a MP) resguarda ajuda possível para os empregados. Ao invés de serem demitidos, o governo entra com ajuda nos próximos 4 meses, até a volta normal das atividades do estabelecimento, sem que exista a demissão do empregado”.
Só que não havia esse compromisso do governo no texto da medida provisória, muito menos a garantia dos empregos suspensos. A explicação oficial foi “um erro de digitação”, como justificou o ministro da Economia, Paulo Guedes. Erro que também ele não notou antes do protesto de sindicatos e políticos.
Nos bastidores, há quem culpe assessores do ministro Paulo Guedes pelo “esquecimento” de incluir no texto esses compromissos do governo federal, que fazem toda a diferença. Uma comédia de erros derivada de uma visão economicista da situação, misturada a um populismo rasteiro por parte do presidente Bolsonaro.
Ele ainda ontem insistia em que “a vida das pessoas está em primeiro lugar”, mas com um porém: “a dose do remédio não pode ser excessiva, de modo que o efeito colateral seja mais danoso que o próprio vírus.” Semelhante ao que o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, um espelho para Bolsonaro, escreveu ontem no Twitter: “Não podemos deixar que a cura seja pior do que o problema”. Ele sugeriu que ao final dos 15 dias de isolamento social imposto, o governo pode rever essa decisão.
O presidente dos Estados Unidos, que no início da crise tinha uma posição negacionista como a de Bolsonaro, mudou radicalmente ao sentir que a crise era muito maior do que imaginava. Agora, diante da previsão de catástrofe econômica, ameaça voltar a uma posição mais economicista do que humanitária.
Nos Estados Unidos, com capacidade inigualável de injetar dinheiro na sociedade para mitigar os efeitos da crise, esse debate ainda é possível, embora muitos economistas importantes digam que não é preciso colocar a economia em oposição à defesa da vida. Entre nós, então, com a deficiência de infraestrutura de saúde acrescida à situação precária em que vive a maioria da população, pensar em flexibilizar o fim do confinamento é precipitado, diante da crise que ainda enfrentaremos, especialmente quando o vírus chegar às favelas das grandes cidades.
A postura leniente do presidente Bolsonaro, no entanto, tem constrangido até mesmo o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, repreendido por ter abordado o possível colapso do sistema de saúde como tema urgente neste momento. A tal ponto que o ministro, que tem recebido o apoio e o agradecimento da população por seu trabalho sério e ponderado, sentiu-se obrigado a fazer um elogio público ao comportamento do presidente da República.
Ontem, circulou na internet um vídeo do ex-ministro da Cidadania Osmar Terra, que voltou ao cargo de deputado federal, mas é candidato potencial ao Ministério da Saúde, até mesmo por ser médico. Terra garante que, com exceção dos idosos e dos portadores de doenças preexistentes, os demais cidadãos deveriam ter uma vida o mais normal possível, pois o vírus tem um ciclo de vida de 13 semanas que independe do confinamento.
Ele considerou “um absurdo” fechar lojas e shoppings, e disse que a economia vai ficar “destruída” e, com a falta de arrecadação, vai faltar dinheiro para manter o sistema de saúde eficiente. O que, aí sim, poderá provocar mortes.
Música para os ouvidos de Bolsonaro, tanto que o ministro Mandetta ontem, no Palácio do Planalto, pediu “calma e planejamento” para paralisações das atividades econômicas para coibir a disseminação do novo coronavírus.“Há lugares que pararam tanto que não tinham mecânicos para a manutenção de determinadas máquinas hospitalares, necessidades prementes que temos no dia a dia de unidades de saúde, de unidades de manutenção de água e esgoto”.