Valor econômico, v.20, n.4964, 20/03/2020. Política, p. A6

 

China exige pedido de desculpas e Itamaraty critica embaixador

Cristiane Agostine

Daniel Rittner

Marcelo Ribeiro 

Vandson Lima

Renan Truffi

20/03/2020

 

 

Filho do presidente Jair Bolsonaro, o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) abriu uma crise diplomática com a China ao culpar o país pela pandemia do coronavírus. A reação do governo chinês foi imediata, com a exigência de um pedido de desculpas da embaixada no Brasil, mas o Itamaraty respondeu com críticas e exigiu uma retratação da China. Coube ao vice-presidente da República, Hamilton Mourão, e ao comando da Câmara e do Senado tentar amenizar o embate, ao isolar Eduardo e afirmar que o filho do presidente não fala em nome do governo brasileiro.

As críticas de Eduardo à China começaram na noite de quarta-feira, pouco depois de o presidente ter sido alvo de panelaços em pelo menos 22 capitais, com cobranças por ações concretas para enfrentar a crise decorrente do coronavírus.

Pelo Twitter, o deputado culpou a China pela doença e acusou o governo chinês de ocultar informações sobre o coronavírus. “Quem assistiu Chernobyl vai entender o que ocorreu. Substitua a usina nuclear pelo coronavírus e a ditadura soviética pela chinesa. Mais uma vez uma ditadura preferiu esconder algo grave a expor tendo desgaste, mas que salvaria inúmeras vidas. A culpa é da China e liberdade seria a solução”, disse Eduardo.

Em tom inusual para declarações no mundo diplomático, a Embaixada da China no Brasil reagiu também publicamente, via Twitter, e reproduziu postagem feita pelo embaixador Yang Wanming: “As suas palavras são um insulto maléfico contra a China e o povo chinês. Tal atitude flagrante anti-China não condiz com o seu estatuto como deputado federal, nem a sua qualidade como uma figura pública especial”, afirmou o embaixador. “A parte chinesa repudia veementemente as suas palavras, e exige que as retire imediatamente e peça uma desculpa ao povo chinês. Vou protestar e manifestar a nossa indignação junto ao Itamaraty e à Câmara.”

O perfil oficial da embaixada chinesa chegou a fazer um tuíte - apagado minutos depois - mais forte: “As suas palavras são extremamente irresponsáveis e nos soam familiares. Não deixam de ser uma imitação dos seus queridos amigos. Ao voltar de Miami, contraiu, infelizmente, vírus mental, que está infectando a amizade entre os nossos povos”.

A resposta do Itamaraty, ontem, seguiu a linha do confronto. O ministro das Relações Exteriores do Brasil, Ernesto Araújo, criticou o embaixador da China no Brasil e cobrou uma retratação do governo chinês. Em nota divulgada pelo Twitter, Araújo disse que é “inaceitável que o embaixador da China endosse ou compartilhe postagem ofensiva ao Chefe de Estado do Brasil”. O ministro afirmou que as críticas feitas por Eduardo à China não refletem a posição do governo, mas defendeu o filho do presidente.

“A reação do embaixador foi, assim, desproporcional e feriu a boa prática diplomática. Já comuniquei ao embaixador da China a insatisfação do governo brasileiro com seu comportamento. Temos expectativa de uma retratação por sua repostagem ofensiva aos chefes de Estado”, disse Araújo. “O Brasil quer manter as melhores relações com o governo e o povo chinês, promover negócios e cooperação em benefício recíproco, sem jamais deixar de lado o respeito mútuo.”

Com a ameaça à relação bilateral entre Brasil e China, o vice-presidente da República buscou apaziguar o embate, ao reforçar que Eduardo não fala pelo governo. “Eduardo Bolsonaro é um deputado. Se o sobrenome dele fosse Eduardo Bananinha, não era problema nenhum. Só por causa do sobrenome. Ele não representa o governo”, disse o vice-presidente, em entrevista à “Folha de S. Paulo”. “Não é a opinião do governo. Ele tem algum cargo no governo?” A crítica de Mourão ao filho do presidente tornou-se um dos assuntos mais populares ontem no Twitter, com o “Eduardo Bananinha”.

Em 2019, o Brasil exportou US$ 62,7 bilhões à China e teve superávit de US$ 27,6 bilhões no comércio bilateral. O país é o maior comprador de soja e minério de ferro, entre outros produtos, e tem aumentado a presença como investidor.

O presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), pediu desculpas à China e ao embaixador chinês “pelas palavras irrefletidas” de Eduardo. “A atitude não condiz com a importância da parceria estratégica Brasil-China e com os ritos da diplomacia. Em nome de meus colegas, reitero os laços de fraternidade entre nossos dois países. Torço para que, em breve, possamos sair da atual crise ainda mais fortes”, afirmou, no Twitter.

Na mesma linha conciliatória, o Senado fez um ofício, também pedindo desculpas. No documento assinado pelo vice-presidente da Casa, Antonio Anastasia (PSD-MG) - o presidente Davi Alcolumbre (DEM-AP) está em isolamento por ter sido infectado pelo coronavírus, mas apoiou a mensagem -, a Casa pede ao embaixador da China no Brasil que leve ao presidente da China, Xi Jinping, a manifestação de respeito e solidariedade ao povo chinês.

Com a gravidade do cenário brasileiro por conta do aumento de pessoas contaminadas pelo coronavírus, com ao menos sete mortes e 621 casos, o filho do presidente preferiu manter as declarações polêmicas. Pelas redes sociais, Eduardo reiterou ontem as críticas ao governo chinês e afirmou mais uma vez que a China censura dados sobre o coronavírus. O parlamentar, no entanto, disse que “jamais ofendeu o povo chinês”, afirmou que não teve a pretensão de falar pelo governo e que “não desejamos problema com a China”.

O governo chinês, novamente, reagiu e a embaixada disse que as falas de Eduardo são “absurdas, preconceituosas e irresponsáveis”. “Não vale a pena refutá-las. Aconselhamos que busque informações científicas e confiáveis nas fontes sérias como a OMS, úteis para ampliar a sua visão”, disse no Twitter.

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Agronegócio vê ataque gratuito ao maior parceiro

Fernando Lopes 

Luiz Henrique Mendes

Rafael Walendoff

20/03/2020

 

 

Uma manifestação infeliz e inconsequente, que ameaça desnecessariamente as relações comerciais entre Brasil e China e o ritmo de abertura de novos mercados para produtos brasileiros no país asiático. Foi assim que produtores, agroindústrias e políticos ruralistas encararam a declaração de quarta-feira do deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), que culpou a China pela pandemia de coronavírus.

Longe dos microfones, alguns representantes do setor de agronegócios pegaram pesado com o filho do presidente Jair Bolsonaro e chegaram a xingá-lo. Mesmo em "on" o tom foi de irritação. A manifestação de Eduardo, em uma rede social, foi considerada um ataque gratuito ao maior parceiro comerciais do país, principal destino dos embarques brasileiros do setor.

Segundo dados da Secretaria de Comércio Exterior (Secex) compilados pelo Ministério da Agricultura, no período de 12 meses encerrado em fevereiro a China absorveu 32,2% das exportações setoriais, ou US$ 30,8 bilhões. O país compra do Brasil sobretudo soja em grão e carnes, mas a pauta inclui dezenas de produtos e a intenção da cadeia produtiva é ampliá-la cada vez mais.

Como a peste suína africana continua a causar muitos problemas à oferta chinesa de proteínas, não se espera que as compras de carnes brasileiras caiam no momento por causa de Eduardo Bolsonaro. O mesmo raciocínio vale para a soja, cujas compras da China já estão menores em consequência da peste suína, que diminuiu a demanda por rações naquele país, e, em menor medida, pelo armistício na guerra comercial entre Washington e Pequim.

"Os chineses estão muito sensíveis a esse tema e esse imbecil [Eduardo Bolsonaro] quer importar a narrativa de Donald Trump em tempos eleitorais para o Brasil", afirmou um dos cardeais do agronegócio brasileiro. Outras quatro fontes ouvidas pela reportagem se referiram a Eduardo Bolsonaro com o mesmo adjetivo - pelo menos três dessas fontes votaram em Jair Bolsonaro, que teve amplo apoio do setor de agronegócios nas eleições.

Todas as pessoas ouvidas aprovaram o posicionamento do presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ), que pediu desculpas à China em nome da Casa, e cobraram postura semelhante do Itamaraty e do próprio presidente Bolsonaro.

Em comunicado, a Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), que reúne 285 congressistas, afirmou que quer manter "no mais alto nível" as relações bilaterais entre Brasil e China, e que "declarações isoladas não representam o sentimento da nação ou de qualquer setor". "Fica aqui também o nosso profundo desejo de união para combatermos o novo coronavírus juntos, sem maiores prejuízos à vida humana e às relações internacionais", diz a nota.

"A credibilidade da mensagem está ligada à pessoa que a emitiu. Não vamos dar importância a isso, não vamos valorizar esse fato", disse o deputado Alceu Moreira (MDB-RS), presidente da FPA, ao Valor. Alguns deputados se movimentavam para convocar a ministra da Agricultura, Tereza Cristina, em busca de explicações sobre a manifestação de Eduardo Bolsonaro. Procurada, a Pasta informou que não iria se manifestar sobre o assunto.

"Em um momento como este, é natural que se tente achar culpados. Mas o momento é de achar respostas, de olhar para a frente. A China é um grande comprador de commodities agrícolas do Brasil e de outros produtos, até de petróleo da Petrobras. Temos que achar a solução para o vírus e acelerar as reformas econômicas. Ninguém pode olhar para o seu curral eleitoral agora. Tem que estar todo mundo unido, esquecer a briga ideológica e buscar soluções", afirmou um grande usineiro.

No segmento de carnes, que tem na China a mais importante fronteira para suas vendas no exterior, as declarações do filho "03" do presidente da República geraram perplexidade, revolta e declarações impublicáveis. Além dos problemas já citados, disse um das fontes do segmento ouvidas pelo Valor, a manifestação de Eduardo escancara a falta de lideranças no país. "Nossa situação é patética", acrescentou o empresário, que exporta à China.

Outro grande empresário até tentou amenizar o caso, argumentando que não se pode esperar muito de Eduardo Bolsonaro. "Nem dei muita bola. Esse cara só fala bobagem", disse ele. Mas esse "desdém" não significa tranquilidade total, sobretudo pelo peso chinês em seus negócios.

O país asiático é o principal destino das exportações de carne bovina e suína do Brasil, e é um dos maiores compradores da carne de frango. No último ano, a China desembolsou cerca de US$ 4,5 bilhões para comprar carnes do país, 27% da receita dos exportadores, conforme dados do Ministério da Agricultura.

Para um dirigente experiente em negociações com importadores de carnes, a dura resposta a Eduardo Bolsonaro do embaixador da China no Brasil, Yang Wanming, não foi um fato isolado. No país asiático, representantes brasileiros confirmaram que o Ministério da Agricultura da China também recebeu "muito mal" o tuíte do filho do presidente. "O clima piora e o chinês é muito ligado nisso", disse.

O alento é que, no curto prazo, ninguém acredita que haverá impacto. Diante dos problemas com a peste suína, a China não pode prescindir da carne brasileira. No ano passado, os chineses habilitaram dezenas de frigoríficos brasileiros para vender ao país e ajudar a suprir a escassez de proteína. A peste suína provocou uma redução de 40% no rebanho do país - antes do doença animal, em 2018, a China respondia por 50% da produção e do consumo mundial de suínos. No longo prazo, contudo, represálias chinesas não estão descartadas.

Para o consultor e ex-secretário de Comércio Exterior Welber Barral, as consequências comerciais de um eventual conflito com a China vão depender, em boa medida, do posicionamento que o Brasil adotará oficialmente perante as declarações de Eduardo Bolsonaro. Mas, na avaliação de Barral, o tema não merece ser "escalado", pois o país já vive uma crise econômica instalada. (Colaboraram Marina Salles e Camila Souza Ramos)

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Declaração abre ferida na relação, dizem especialistas

Hugo Passarelli

20/03/2020

 

 

Apesar de, por ora, estarem concentradas no campo retórico, as críticas do deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) à China por causa da crise do novo coronavírus representam uma ameaça à relação bilateral com o Brasil, dizem especialistas.

Há divergências se uma possível escalada das tensões afetaria mais o comércio ou os investimentos chineses por aqui. Mas, qualquer que seja o desfecho, o sinal é negativo em um momento em que o Brasil provavelmente enfrentará uma recessão técnica no primeiro semestre e, portanto, deveria se valer dos parceiros para engatar uma retomada da atividade.

Depois de criticar a China pela disseminação do vírus, Eduardo voltou a se pronunciar, procurando esclarecer que se referia ao governo e não ao povo chinês (ver nesta página). O vice-presidente, Hamilton Mourão, também disse que as afirmações não representam uma posição de governo sobre o tema.

"A perda da percepção de que o Brasil não é um parceiro estratégico e confiável da China levaria a uma perda colossal nas exportações", afirma José Pio Borges, presidente do conselho curador do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri), destacando que esse cenário ainda é improvável na conjuntura atual.

Segundo ele, apesar de a maior pauta exportadora do Brasil para a China ser a agrícola, o petróleo também tem ganhado relevância. "A China pode comprar petróleo da Rússia, Oriente Médio, Estados Unidos e a única forma de o Brasil crescer neste mercado é se colocando como um parceiro. Além disso, para todos os produtos que exportamos para lá temos concorrentes que procurem de toda a forma manter a agenda alinhada", afirma Pio Borges.

Após a retração econômica esperada para este ano, uma parceria saudável é ainda mais relevante, diz o presidente de conselho do Cebri. "Se há alguma esperança de retomada de crescimento nos próximos anos ela terá se der baseada em exportações e investimentos em infraestrutura, ambas com relevante papel da China", afirma.

O professor de relações internacionais da Fundação Getulio Vargas (FGV), Oliver Stuenkel, vê mais impactos nos projetos chineses no Brasil do que nas exportações, não necessariamente restritos ao setor de infraestrutura. "O ideal é que o presidente Bolsonaro viesse a público para acalmar os ânimos. Esse episódio abriu uma ferida que achavam estar curada depois das eleições", afirma.

Uma preocupação extra, lembra, é o fato de que a China, nos próximos meses, será um ator fundamental no fornecimento de equipamentos médicos fundamentais à contenção do coronavírus.

Segundo Stuenkel, o recomendado a partir de agora é cautela no alinhamento automático com os Estados Unidos em questões diplomáticas. "A relação Estados Unidos-China piorou muito, o Brasil precisa tomar mais cuidado em manter as boas relações com os dois do que um ano atrás. O maior desafio nos próximos dez anos vai ser achar o caminho certo no meio da tensão que vai marcar o sistema internacional", afirma.

Outro ponto de atrito entre as diplomacias brasileira e a chinesa pode ocorrer na definição da tecnologia para implementação da rede 5G, dizem os especialistas. "Se o Brasil, após uma declaração dessas, vier a ter uma posição política - e não técnica - em relação ao 5G, sem dúvida será um passo que comprometerá as relações bilaterais", afirma Pio Borges.