O globo, n. 31642, 25/03/2020. Especial Coronovírus , p. 8

 

Na contra mão do mundo: Bolsonaro quer fim do confinamento

Daniel Gullino

Naira Trindade

Thais Arbex

25/03/2020

 

 

Na contramão de medidas adotadas globalmente por países e de recomendações de autoridades da área da saúde para combater o novo coronavírus, o presidente Jair Bolsonaro fez um pronunciamento ontem à noite em rede nacional de rádio e TV defendendo a reabertura do comércio e das escolas e o fim do “confinamento em massa ”. Retomando o discurso de minimizara pandemia, mesmo diante da expansão dos números de contaminação, ele culpou os meios de comunicação por espalhar “pânico” e criticou autoridades estaduais que adotaram, na sua visão, “o conceito de terra arrasada”.

O pronunciamento provocou repercussão ainda ontem na sociedade e no meio político. Em várias capitais, houve pane laços. Em Brasília, areação começou pelo presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), que classificou a fala como “grave” e disse que “a nação espera do líder do Executivo seriedade e responsabilidade ”. Acrítica deBol sonar o às ações dos governadores ocorre emmeio a uma rodada de reuniões virtuais entre ele e os chefes de Executivos estaduais. N amanhã de hoje, ele terá videoconferência com os governadores do Rio, Wilson Witzel, e de São Paulo, João Doria.

— Algumas poucas autoridades estaduais e municipais devem abandonar o conceito de terra arrasada, a proibição de transportes, o fechamento de comércio e o confinamento em massa. O que se passa no mundo tem mostrado que o grupo de risco é o das pessoas acima de 60 anos. Então, por que fechar escolas? — questionou Bolsonaro.

No mundo, a pandemia já ultrapassou a marca de 420 mil contaminados, com mais de 18 mil mortes.

Bolsonaro voltou a minimizara doença, chamando novamente de “gripezinha”. Citou que ele próprio, que foi atleta, não deveria ter problema para enfrentar uma eventual contaminação.

—Raros são os casos fatais de pessoas sãs com menos de 40 anos deidade. Devemos sim éter extremap reocupação em não transmitir o vírus para os outros, em especial aos nossos queridos pais e avós.

Bolsonaro criticou ainda a cobertura da imprensa, afirmando que veículos de comunicação espalharam “a sensação de pavor” e potencializaram um cenário de “histeria”. Bolsonaro alegou que a imprensa baseou-se no alto número de mortos na Itália para projetar uma situação semelhante no Brasil, mas disse que a comparação não faz sentido porque o país tem mais idosos e um clima diferente.

Nos bastidores, a avaliação de interlocutores de Bolsonaro é de que o clima do Brasil possa ajudar as pessoas a resistir aos efeitos do Covid-19. Aliados usam os baixos índices de morte da Austrália — cujo clima é semelhante — para justificar o pensamento de que o Brasil pode passar pela pandemia sem sentir muito os efeitos da doença. A possibilidade de o vírus resistir menos no calor é estudada por cientistas, mas ainda carece de confirmação.

As declarações do presidente em rede nacional foram criticadas por especialistas no combate à pandemia.

—Não se pode colocara economia às custas da vidadas pessoas. Eéqueiss ose faz quando alguém pede para abrir as escolas ou sair de uma quarentena. Na Alemanha, a Angela Merkel afirmou que esteéo momento mais difícil desde a Segunda Guerra, e esta é apostura correta—analisou o coordenador técnico da Sociedade Brasileira de Infectologia, Hélio Bacha.

O infectologista Alberto Chebabo, diretor médico do Hospital Universitário Clementino Fraga Filho, da UFRJ, afirmou que o pronunciamento foi“irresponsável” ecoloca em risco a saúde da população.

—Principalmente a vida dos mais pobres e dos mais vulneráveis. Crianças não vão sozinhas para a escola. Crianças têm pais, têm professores. Há toda uma cadeia de transmissão. É um desestímulo à parte da população que tem agido com responsabilidade.

MANDETTA ACOMPANHA

Mais cedo, Mandetta deu declarações contrárias a um fechamento total das atividades no país, num alinhamento prévio ao tom adotado por Bolsonaro.

— Esse travamento absoluto do país para a saúde é péssimo —disse o ministro.

Em isolamento devido ao contágio do novo coronavírus, o ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), Augusto Heleno, auxiliou o presidente Jair Bolsonaro na confecção do conteúdo. Bolsonaro foi aconselhado a orientara manutenção em isolamento apenas pessoas vulneráveis e “liberar” jovens e crianças para avida normal. Há uma preocupação com ambulantes, flanelinhas, caminhoneiros que estão sofrendo os efeitos da paralisação da pandemia diretamente na forma de ganhar dinheiro. Um dos argumentos usados pelo governo reservadamente é que a Itália tem hábitos “fumantes”, o que intensifica o efeito do Covid-19, eque noBr asila situação pode ter menos impacto.

De acordo com aliados, Bolsonaro reagiu também às redes sociais que o estão massacrando ele por causa da falta de emprego. Segundo interlocutores do presidente, o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, não acompanhou as gravações do pronunciamento.

“Algumas poucas autoridades estaduais e municipais devem abandonar o conceito de terra arrasada, a proibição de transportes, o fechamento de comércio e o confinamento em massa. (...) o grupo de risco é o das pessoas acima de 60 anos. Então, por que fechar escolas?”

Jair Bolsonaro, durante promunciamento

 MAU CONSELHEIRO

“Brevemente Passará”

“O vírus chegou, está sendo enfrentado por nós e brevemente passará. Nossa vida tem que continuar”, disse o presidente. Seu ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, já afirmou repetidas vezes que o número de casos subirá aceleradamente em abril e maio e só deve começa raca irem agosto. Acidade chinesa deWu han, onde a epidemia se iniciou, começou atentar retomar sua rotina apenas hoje, após quase três meses de um bloqueio total. Não há como prever com exatidão por quanto tempo o Brasil e o mundo enfrentarão a Covid-19.

“Por que fechar escolas?”

“O que se passa no mundo tem mostrado que o grupo de risco é o das pessoas acima dos 60 anos. Então, porque fechar escolas?” Em sua maioria, as crianças têm desenvolvido uma forma leve ou assintomática da doença, o que dificulta rastreá-la neste público. Sem saber que carregam o vírus, elas passam aporem risco os mais velhos. Mais de 1,3 bilhão de estudantes estão sem aula em 138 países, segundo a Unesco. A medida é adotada também para evitar aglomerações e diminuir a velocidade do contágio.

“Raros são os casos”

Bolsonaro enfatizou em outro momento a questão etária: “Raros são os casos fatais de pessoas sãs com menos de 40 anos de idade”. Minimizar o impacto do vírus nos mais jovens, mesmo entre os que não apresentam comorbidades, é um equívoco já denunciado pelo diretor-geral da Organização Mundial da Saúde, Tedros Adhanom Ghebreyesus, na última sexta-feira: “Tenho uma mensagem para os jovens: vocês não são invencíveis. Esse vírus pode levá-los ao hospital por semanas, e até matá-los”. Na Itália, 1.800 pessoas na faixa de 30 anos estão com pneumonia por conta do novo coronavírus.

“Meu histórico de atleta”

“No meu caso particular, pelo meu histórico de atleta, caso fosse contaminado pelo vírus, não precisaria me preocupar.” Aos 64 anos, Bolsonaro faz parte do grupo etário de maior risco. E a lista de atletas profissionais jovens contaminados inclui o ala da NBA Kevin Dur ante outros 11 jogadores da liga de basquete.