O globo, n. 31642, 25/03/2020. Especial Coronavírus, p. 13

 

A epidemia da miséria

Rafael Nascimento Souza

25/03/2020

 

 

CIDADE DE DEUS, PRIMEIRA COMUNIDADE A REGISTRAR CASO, CONVIVE COM O MEDO

Com aproximadamente 38 mil moradores, a Cidade de Deus — favela que é vizinha da Barra da Tijuca e de Jacarepaguá e tem indicadores sociais entre os mais críticos da cidade — foi a primeira comunidade do Rio a registrar um caso de coronavírus. Outros 19 estão sendo investigados. Sem água e esgoto, com muitas pessoas vivendo em um único cômodo e em péssimas condições de higiene, a população local se preocupa coma evolução da pandemia.

Por todos os cantos, é possível sentir o clima de medo. Antes mesmo da confirmação do primeiro caso da doença, um grupo de moradores se reuniu para traçar estratégias de sobrevivência e orientara população. A Frente da Cidade de Deus já conta com cerca de 40 integrantes. O primeiro desafio tem sido arrecadar e distribuir itens de limpeza pessoal, água e alimentos para quem mais precisa. Na última segunda-feira, os voluntários entregaram 48 kits no Brejo, um dos lugares mais miseráveis da região, conhecido como“afavelada favela ”. Surgiu logo depois da Olimpíada de 2016 e, ali, as casas ainda são de madeira.

Grávida de oito meses, a dona de casa Yane Dias da Silva, de 21 anos, mora como marido e quatro filhos —de 1, 4, 7 e 8 anos — num barraco de seis metros quadrados. No casebre, ela cozinha , faz as necessidades fisiológicas e dorme. Prestes a dar à luz o quinto filho, Yane está apavorada. Ela tem tentado manter os pequenos no exíguo espaço em que vive.

—Vamos fazer o quê? Aqui, agente só tenta sobreviver. Não tem água potável nem esgoto, as crianças vivem doentes. O jeito é tentar deixar os meninos, que agora estão sem as aulas, dentro de casa. Mas é muito apertada, eles acabam indo para a rua — diz ela que, na semana passada, recebeu um kit de higiene pessoal. — O meu maior medo é meus filhos serem infectados. Não temos sequer comida.

Segundo a Secretaria municipal de Saúde, são investigados pelo menos 61 casos de coronavírus em comunidades do Rio. Ao lado de Yane, mora a desempregada Deise Moreira do Espírito Santo, de 32 anos. Ela divide um barraco de 12 metros quadrados e forte cheiro de mofo com o marido e os sete filhos, incluindo um bebê de cinco meses. As telhas estão caindo, e a família precisa esperara chegada da água,que é incerta, para ter um mínimo de higiene. Eles comem pouco, e Deise se sente fraca.

—A nossa maior dificuldade é a falta d’água e de comida—conta ela.

Seu marido, o entregador Valmir Rodrigues Santos, de 39 anos, não vai para o trabalho há mais de uma semana, desde que patrão suspendeu as atividades.

— Se eu pegar isso, não terei como proteger meus filhos —afirma Valmir.

Empregada doméstica, Joana Célia da Conceição, 53, vive em uma residência de oito metros quadrados ao lado de um valão, com cinco filhos e 11 netos. Sem fazer seus “corres” —já que suas patroas suspenderam os serviços —, Joana mal tem água para beber:

— Temos pouca comida e nos viramos como dá. A á gu aé pouca e damos prioridade para beber. Comovamos lavaras mãos para evitara infecção?

'FOI ASSIM QUE DEUS QUIS’

A família faz parte da população de 700 pessoas que vive no Brejo. Muitas catam restos de comida, principalmente de frutas e legumes, num lixão da Estrada do Urubu, em Jacarepaguá, onde sacolões deixam sobras de mercadorias. Com 101 anos, Hilda Ramos vive de uma pensão num barraco, também de madeira, com um filho e um neto. Descalça, ela conta que não tem como comprar álcool em gele máscaras. A idosa conta coma ajuda de voluntários para resistir:

—Vamos levando avida. Foi assim que Deus quis. A gente só queria um pouco de dignidade.

Um das fundadoras do movimento SOS CDD, a cabeleireira Gisela Maria Lopes se desespera.

— Tem criança aqui que morre de pneumonia por causada insalubridade—diz.

Um dos fundadores do projeto Nóiz, André Melo tem colaboradores de triciclo orientado sobre o coronavírus:

—Estamos recebendo doações de água sanitária, cloro e até água mineral para os moradores.