Correio braziliense, n. 20769 , 03/04/2020. Economia, p.8/9

 

Salários podem cair à metade na crise

Alessandra Azevedo

Rosana Hessel

03/04/2020

 

 

CORONAVÍRUS » Compensações pagas pelo governo a trabalhadores que aceitarem reduzir os rendimentos em troca de preservação do emprego, nos termos definidos pela MP nº 936, não cobrirão as perdas. Especialistas preveem aumento de disputas judiciais

Trabalhadores que firmarem acordo com os patrões para reduzir jornadas podem perder mais da metade dos salários, mesmo com a compensação paga pelo governo. A Medida Provisória (MP) 936, assinada na quarta-feira pelo presidente Jair Bolsonaro, prevê um complemento por parte da União que não ultrapassa R$ 1.269,12 — o equivalente a 70% da parcela do seguro-desemprego paga para quem recebe salários acima de R$ 2.666,29. O valor máximo, de R$ 1.813,03, só é garantido na suspensão dos contratos, não na redução de jornada.

Quem ganha R$ 10 mil, por exemplo, pode passar a receber R$ 4.269,12, uma perda de 57,31% dos ganhos. São R$ 5.730,88 mensais a menos na conta, por até três meses, se o patrão e o funcionário negociarem um corte de 70%, uma das opções possíveis. Nesse caso, a empresa manteria 30% do salário (R$ 3 mil), e o governo daria um auxílio de 70% da parcela que a pessoa receberia como seguro-desemprego, se fosse demitida: R$ 1.269,12.

A situação mencionada é uma das passíveis de acordo individual, sem necessidade de participação do sindicato da categoria. A negociação coletiva é dispensada se o funcionário tiver ensino superior e receber mais de R$ 12.202,12, o equivalente ao dobro do teto de benefícios do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). Quem ganha até três salários mínimos (R$ 3.135) também pode resolver o assunto direto com o patrão.

Uma pessoa que recebe R$ 2 mil por mês, por exemplo, pode ter perda de até R$ 364,08, ou 18,2% do salário, se o corte for de 70% na jornada. O governo compensaria com R$ 1.035,92, ou 70% da parcela devida de seguro-desemprego para quem recebe essa faixa salarial. A lógica é a mesma nas outras duas opções de redução, de 25%, com compensação de 25% da parcela do seguro, e de 50%, em que o governo arca com 50% do valor do seguro.

Além de quem recebe até três salários mínimos ou mais de R$ 12.202, com ensino superior, também pode negociar direto com o patrão qualquer pessoa que concordar com a redução mais baixa permitida, de 25% da jornada. Só precisam fazer acordo coletivo funcionários que estão na faixa intermediária — recebem entre R$ 3.135 e R$ 12.202 por mês — e se a redução for de 50% ou 70%. As suspensões de contrato também só exigem acordo coletivo nesses casos.

Judicialização

A possibilidade de acordo individual é criticada pela Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra) e a Associação Nacional dos Procuradores do Trabalho (ANPT), que consideram a medida inconstitucional. A economista Juliana Inhasz, do Insper, acredita que os processos trabalhistas tendem a aumentar daqui para frente por conta da judicialização que a medida deverá provocar. “Estou imaginando uma enxurrada de processos no Judiciário”, disse.

Marcos Chehab, coordenador do Movimento da Advocacia Trabalhista Independente (Mati), diz que a MP é inconstitucional. “Uma MP nunca pode autorizar a supressão de convenções ou acordos coletivos mediante esses acordos ou ajustes individuais entre patrões e empregados”, declarou. “A MP exclui qualquer participação de sindicatos no acordo”, criticou.

O argumento foi o mesmo usado pela Rede Sustentabilidade, que protocolou uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) ontem no Supremo Tribunal Federal (STF) contra a medida. Para o advogado Luiz Marcelo Gois, sócio da área trabalhista do BMA, a possibilidade de acordo individual, “por si só, desperta algum nível de insegurança jurídica”.

O secretário especial de Previdência e Trabalho, Bruno Bianco, explicou, ontem, que, “na totalidade das situações, o salário-hora será majorado”, já que o funcionário trabalhará menos e receberá o complemento do governo. Segundo Gois, “de fato, as medidas adotadas não reduzem o salário-hora do empregado”. Ele explica, no entanto, que “o problema é que o valor, no fim do mês, acaba vindo até zero”.

O advogado trabalhista Lucas Santos, do escritório Mendonça & Santos, recomenda às empresas que, por garantia, procurem sindicatos para negociar o assunto, em qualquer caso. “Assim, empresas e trabalhadores ficam mais bem amparados”, considerou. A Confederação Nacional da Indústria (CNI) elogiou as medidas. “É importante evitarmos ao máximo a demissão. Com demissões, teremos consequências muito piores para o país”, disse o presidente da entidade, Robson Andrade.

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Desemprego: alta invitável

Rosana Hessel

03/04/2020

 

 

Apesar de a Medida Provisória nº 936 permitir a redução de jornada e de salários, com o intuito de reduzir o custo das empresas, as previsões para o desemprego neste ano não são nada animadoras diante da recessão que está se formando na economia global.

De acordo com especialistas, a tendência é de um aumento inevitável da taxa de desocupação e no número de desalentados. Mesmo com a edição da MP, o economista-chefe da Austin Rating, Alex Agostini, manteve a previsão de 13,5% para a taxa de desemprego no fim de 2020. “Nossa previsão não vai mudar porque a recessão vai ser forte, e há um volume de informais que vai crescer muito e entrar na conta dos desalentados”, disse.

Em fevereiro, a taxa de desemprego ficou em 11,2% da população economicamente ativa, totalizando 11,9 milhões de pessoas. O ritmo de aumento da desocupação, no entanto, não deverá ser parecido com o dos Estados Unidos, na avaliação da economista Thais Zara, da LCA Consultores.

“Nos EUA, o mercado de trabalho é diferente e as leis trabalhistas são mais flexíveis do que no Brasil. Se a situação é temporária, não vale a pena demitir devido aos custos. Os pedidos de seguro-desemprego nos EUA aumentaram mais por licença do que por demissões”, destacou. Conforme dados do Departamento do Trabalho norte-americano, os pedidos subiram para 6,65 milhões na última semana, ante 3,3 milhões na anterior.

Recessão

Thais Zara elogiou o esforço do governo para tentar minimizar as demissões, mas lembrou que, devido à recessão, demissões serão inevitáveis, e já estão acontecendo. “O mercado de trabalho não vai passar incólume a essa recessão e, agora, no segundo trimestre, é que o cenário deve ficar pior”, destacou.

O economista Carlos Alberto Ramos, professor da Universidade de Brasília (UnB), lembrou que existem 40 milhões de informais no país e que o aumento de desemprego no Brasil não poderá ser medido, como nos EUA, pelo crescimento dos pedidos de seguro-desemprego. “Muitos trabalhadores autônomos estão sem poder trabalhar e sem renda”, lamentou.  Ele lembrou que assalariado tem um custo fixo para as empresas. “A MP vem no sentido de preservar o vínculo em vez de desligar o funcionário”, completou.

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20 milhões sem ter o que ganhar

Marina Barbosa

Sarah Teófilo

03/04/2020

 

 

CORONAVÍRUS » Governo não sabe quantas pessoas estarão de fora do recebimento da ajuda em dinheiro contra a crise. De acordo com especialista, aproximadamente 10% da população brasileira podem não ser atingidos pelo benefício de R$ 600. Governo quer alcançar 54 milhões

Sem as diárias da limpeza que fazia duas vezes por semana, Thayne Cristina Poncen Monteiro, de 30 anos, não sabe o que fazer, a não ser esperar “o benefício do governo”. Conforme disse, “não trabalhou, não recebe, e a patroa não me quer lá mais por causa do vírus”. Sem carteira assinada, a moradora do Sol Nascente, no Distrito Federal, conta que sua renda, de R$ 800 antes das pandemia, agora é zero. Não bastasse a preocupação com a infecção, ainda tem que se virar para dar o que comer aos dois filhos, de 6 e 9 anos. “É ter fé em Deus”, resigna-se.

As histórias de autônomos sem saber de onde tirar a subsistência, no momento em que todos estão isolados socialmente, são inúmeras. Na última edição da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua), divulgada nesta semana pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), havia em fevereiro 38 milhões de trabalhadores informais. Mas, desses, quantos terão realmente acesso ao benefício de R$ 600 anunciado pelo presidente Jair Bolsonaro?

O governo não sabe quantas pessoas que estão fora das plataformas de registros, a fim de que possa fazer os repasses. Estimativas do secretário-geral da Associação Contas Abertas, Gil Castello Branco, dão conta de que aproximadamente 20 milhões de pessoas estão fora da base de dados dos ministérios, o que daria em torno de 10% da população brasileira –– hoje em 211,3 milhões, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

“O Brasil tem 11,9 milhões de desempregados, 4,7 milhões de desalentados, 38 milhões de informais, 19 milhões de pessoas que trabalham por conta própria e 100 mil pessoas que moram nas ruas. Essa soma dá 73,7 milhões de brasileiros. E são 14 milhões de famílias que recebem Bolsa Família. Se consideramos que uma família contempla quatro pessoas, são 56 milhões de pessoas no Bolsa Família. Então, ainda tem uns 20 milhões de pessoas que o governo vai ter que localizar”, indica, acrescentando com certo pessimismo. “E esse processo, em um país com as nossas dimensões, leva tempo”.

54 milhões

O governo federal espera contemplar 54 milhões de pessoas com o benefício, e o Bolsa Família, que será a primeira etapa desse pagamento, atende 14 milhões de pessoas. Os outros 40 milhões de trabalhadores tentarão ser “achados” de duas formas: por meio da base de dados do MEI e da lista de empreendedores individuais que contribuem com o INSS, no caso dos microempreendedores individuais; e por meio de um sistema digital, que o governo prometeu liberar para o cadastramento dos trabalhadores informais que não estão em nenhum programa de assistência social.

Esse sistema, contudo, ainda está sendo implementado, mas sem data de lançamento. Por enquanto, só pediu que os trabalhadores tenham calma e não corram às agências bancárias em busca do benefício.

Enquanto isso, os informais aguardam a ajuda. Também no Sol Nascente, uma das maiores favelas da América Latina, a casa da feirante Cíntia Ramos, de 28 anos, tem agora somente a renda de um salário mínimo do irmão para viver. E com ela e o irmão, vivem a mãe, uma irmã e um sobrinho de quatro anos. A maior parte dos rendimentos vinha das feiras feitas por Cíntia, que pararam devido às medidas de isolamento. Para eles, já não tem carne e começou a faltar arroz e feijão.

Ainda na comunidade, o pedreiro Nildemar Pereira Fraga, de 52 anos, conta que está há mais de duas semanas sem receber. Na porta de casa ao lado da mulher, que é diabética, explica que só conta com o salário de uma das filhas (funcionária de uma farmácia) para se manter.

Coordenador do curso de Ciências Econômicas do Centro Universitário Iesb, Riezo Almeida lembra que, além da dificuldade de encontrar esses trabalhadores, o governo é obrigado a seguir um longo rito burocrático para poder liberar o pagamento. “Qualquer transferência, para chegar na ponta, leva tempo, porque nosso país tem muita burocracia”, lembrou.

É por isso que o economista Francisco Menezes, analista de Políticas e Programas da ActionAid, acredita que o governo deveria adotar uma estratégia mais célere, como a busca ativa, que foi usada na implementação do Bolsa Família. “É buscar a partir dos territórios, com o auxílio das prefeituras e dos organismos da sociedade civil que têm contato com esses trabalhadores. Se o dinheiro não chegar logo, vamos ver situações dramáticas em breve”, avisou.