Valor econômico, v.20, n.4960, 16/03/2020. Legislação & Tributos, p. E2

 

Impacto do coronavírus em contratos internacionais

Thomas Law

Cláudio Finkelstein

16/03/2020

 

 

O coronavírus (covid-19) impactou sobremaneira as relações econômicas internacionais. Seja na área do turismo, serviços ou indústria inúmeros contratos certamente serão descumpridos, seja em virtude de paralisações na cadeia produtiva, que impactam exportação de produtos e importação de insumos, seja no embarque devido à interrupção de tráfego aéreo e portuário entre diversas jurisdições.

De acordo com o “Financial Times”, até 27 de fevereiro, o governo chinês já havia emitido 3.325 Certificados de Força Maior envolvendo contratos internacionais avaliados em 270 bilhões de remimbis (US$ 38,5 bilhões), numa tentativa de proteger o empresariado local das consequências dos inevitáveis descumprimentos contratuais que se seguirão às medidas adotadas pelo governo para prevenir e tratar a epidemia, medidas estas, repise-se, necessárias.

Ainda que a China reconheça a incidência do instituto da “force majeure” para isentar responsabilidades derivadas de descumprimentos contratuais, assim como o Brasil, que por força do artigo 393 do Código Civil exime o devedor de responsabilidades, o mesmo não se pode afirmar do restante das jurisdições mundo afora. Em quaisquer jurisdições, no entanto, é o contrato que determina as consequências de um descumprimento contratual e no cenário internacional estes podem conter diversas previsões, e se sujeitar a uma gama de legislações aplicáveis cada uma com peculiaridades que as distinguem das demais, e que podem mudar a interpretação dos respectivos direitos e deveres das partes.

Tanto a China quanto o Brasil são signatários da Convenção de Viena sobre Compra e Venda Internacional de Mercadorias (CISG). Esta, por ser um amálgama das diversas legislações e costumes praticados e existentes no comércio internacional, utiliza em seu artigo 79 o termo “impedimentos” e “mudança de circunstâncias” que acomodam a classificação das situações em que fatos além do controle das partes impossibilitam a performance, independente das definições dos diversos direitos locais, e nos parece que as consequências do coronavírus em tais circunstâncias funcionariam como uma válvula apta a isentar responsabilidades.

No caso das exportações, com o fechamento das linhas de produção chinesas, o estoque de produtos acabados de um determinado setor pode não conseguir cumprir as entregas nos prazos estipulados dos contratos. Em relação às importações, com as linhas de produção fechadas ou desaceleradas, as matérias-primas já adquiridas e armazenadas para serem recebidas e usadas na produção provavelmente não serão necessárias. Talvez nem possam ser desembarcadas ou armazenadas, afetando diretamente o comércio internacional. Importante esclarecer que o remédio resolutório (a rescisão contratual) da CISG, o chamado “avoidance”, é considerado a última “ratio” (ou “last resort”), utilizada somente em casos excepcionais, cujos requisitos para sua configuração são bastante específicos e limitados. A ideia que prevalece é a de manutenção do contrato.

A CISG optou pelo princípio da preservação dos contratos e pelo princípio da obrigatoriedade dos pactos (“pacta sunt servanda”), sendo certo que a manutenção do contrato faz com que as obrigações contratadas permaneçam vigentes. Portanto, embora haja toda a especulação e os prejuízos no âmbito econômico do comércio internacional diante do efeito covid-19, a CISG ainda assim prevê regras de preservação dos contratos. Para isso basta verificar que as previsões do artigo 49 (1) são, assim, taxativas, havendo apenas duas possibilidades para a configuração da rescisão do contrato. A primeira delas ocorre quando há um “descumprimento fundamental” do contrato, o que nos remete ao artigo 25 - que, por sua vez, reenvia o intérprete à aplicação de conceitos indeterminados. A segunda acontece quando é ultrapassado o chamado “prazo suplementar” conferido pelo comprador (Nachfrist), na hipótese de não entrega das mercadorias no prazo avençado.

Embora haja toda a fundamentação da preservação dos negócios no comércio internacional pela CISG, assim como pelo direito brasileiro ou chinês, em arbitragem (meio preferido para a solução para as controvérsias de direito internacional) há também a possibilidade da invocação das recém editadas Regras de Haia para Arbitragem Comercial e de Direitos Humanos (“The Hague Rules on Business and Human Rights Arbitration”), que poderiam se aplicar a casos de proteção aos direitos humanos (saúde pública). Do mesmo modo, em arbitragem regidas pela Lei Modelo da Uncital, empresas chinesas e brasileiras podem fazer uso de tais cláusulas como forma de se eximir de obrigações contratuais devido a circunstâncias fora do seu controle, desde que em seus contratos não haja previsão em sentido contrário.

É um cenário com o qual o Brasil deve se preocupar, uma vez que a China é seu maior parceiro comercial. Em 2018, as trocas comerciais entre os dois países atingiram um montante de US$ 100 bilhões. Destaca-se que o Brasil teve um superávit de mais de US$ 46 bilhões ao fechar o ano de 2019, isto é, o nosso país exportou mais do que importou, deixando a balança comercial favorável, sendo que a maioria da exportação teve destino ao mercado chinês.