Valor econômico, v.20, n.4968, 26/03/2020. Política, p. A14

 

"Na política e na vida, a ignorância não é virtude"

Malu Delgado 

26/03/2020

 

 

Aliado de Jair Bolsonaro desde a campanha eleitoral de 2018, o governador de Goiás, Ronaldo Caiado (DEM), declarou ontem o rompimento político com o presidente da República. Em pronunciamento e entrevista à imprensa feito em Goiás e transmitido ao vivo pelas redes sociais, por quase uma hora, Caiado, que é médico, foi extremamente duro com Bolsonaro. Citando uma frase atribuída ao ex-presidente dos Estados Unidos Barack Obama, deu um recado ao chefe de Estado brasileiro: "Na política e na vida, a ignorância não é uma virtude".

Entre todo o time de 27 governadores, Caiado era um dos poucos aliados e talvez o mais fiel a Bolsonaro. Ex-senador, ele pressionou a direção nacional do DEM para que o partido integrasse oficialmente o governo Bolsonaro. Foi derrotado, e o DEM optou por dar apoio de maneira independente ao governo federal, apesar de três ministros do time de Bolsonaro, incluindo o da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, serem do partido.

"Declaro ao povo de Goiás, com o juramento de médico que sou, e que não abro mão dele, que as decisões do presidente da República, no que diz respeito a área de saúde e ao coronavírus, não alcançam o Estado de Goiás." O Estado, enfatizou o governador num vídeo que postou nas redes sociais horas após a entrevista, seguirá em quarentena pelo menos até 4 de abril, cabendo exclusivamente ao governo de Goiás tomar qualquer decisão sobre eventuais medidas de flexibilização.

"Como médico e governador do Estado, não posso admitir e nem concordar com um presidente que vem a público, sem ter consideração com seus aliados, sem ter respeito com seus aliados. Fui aliado de primeira hora. Fui aliado durante todo o tempo, mas não posso admitir que venha agora o presidente da República lavar as mãos e responsabilizar outras pessoas por um colapso econômico ou uma falência de empregos que amanhã venha a acontecer", desabafou Caiado.

A conversa com Bolsonaro agora será apenas por "comunicados oficiais", e o diálogo com Brasília, sinalizou, será feito com intermediação do Congresso e do Supremo Tribunal Federal. É a esses Poderes que recorrerá, disse, para manter suas decisões.

O governador classificou as declarações de Bolsonaro de irresponsáveis, não condizentes com o papel de um líder ou um estadista. Enfatizou que seguirá os protocolos da OMS (Organização Mundial de Saúde) e do corpo técnico do Ministério da Saúde.

Ancorado em sua formação profissional, disse que o isolamento é a única maneira eficaz de frear o processo de disseminação, como já se observou na China, Itália e França. As medidas de restrição adotadas em Goiás até agora, assegurou, estão, sim, mantendo a curva de disseminação do vírus dentro de um limite estável, condizente com a capacidade de atendimento do SUS, o que é o grande desafio para as autoridades.

Ele elogiou os empresários de Goiás e os agradeceu pela compreensão, aproveitando para criticar os representantes do setor que são "vorazes pelo lucro e pelo dinheiro". Para Caiado, a fala "irresponsável" de Bolsonaro cria uma espécie de "ninho da serpente" para transferir responsabilidades pela colapso da economia no futuro aos governos locais. "É motivo de criar uma situação como se amanhã o desemprego fosse responsabilidade das pessoas que estão contendo o fluxo, a movimentação? Amanhã, sim, eu terei queda na arrecadação do meu ICMS. E aí é 'então resolva lá, porque isso é situação de cada um'. É correto? Isso é postura de um governante?", desabafou.

A crise econômica ampliada e o desemprego serão inevitáveis, reconheceu. "Então por que responsabilizar os outros, dar uma de Pôncio Pilatos e lavar as mãos? Eu sou o governador de Goiás. Sou eu que respondo por 7,2 milhões de goianos", sentenciou.

Nas entrelinhas, rechaçou, ainda, qualquer iniciativa para decretação de estado de sítio. "Não tem ambiente para que ninguém se coloque acima de regras democráticas". Num recado a Bolsonaro, disse que seria possível ter "humildade de poder rever posições e acolher o que a ciência e a comunidade acadêmica definem como recomendação". O governador também criticou fortemente a propaganda de Bolsonaro em favor da hidroxicloroquina, dizendo que o uso do medicamento já causou óbitos e exige estudos e responsabilidade médica.

Caiado disse que sua postura em relação a Bolsonaro é individual, e assegurou que ela não está orquestrada com outros políticos ou com o DEM. Sobre a manutenção do ministro Mandetta no cargo, disse que caberá a ele tomar suas decisões políticas.

Logo depois da entrevista, ministros palacianos telefonaram para interlocutores de Caiado para tentar convencê-lo a recuar. Segundo fontes do governo goiano, auxiliares de Bolsonaro acionaram o ministro da Cidadania, Onyx Lorenzoni, e o ex-assessor Bernardo Lupion, que têm laços estreitos com o governador, para que busquem uma conciliação entre Caiado e Bolsonaro. (Colaboraram Andrea Jubé, Fabio Murakawa e Matheus Schuch, de Brasília