Valor econômico, v.20, n.4969, 27/03/2020. Especial, p. A16

 

A covid-19 e a recessão de 2020

Francisco Lopes 

27/03/2020

 

 

O maior desafio agora é projetar a desaceleração da atividade econômica que vai resultar da covid-19. Para isso o primeiro passo é projetar a evolução da própria covid-19. (Observação: texto elaborado com dados disponíveis até 22 de março.)

1) Evolução da covid-19

Em nível mundial a epidemia produziu 335 mil casos com 14,6 mil mortos (4,4% dos casos). Dos 223 mil casos ativos, 10,6 mil (ou cerca de 5%) são considerados sérios/críticos, requerendo hospitalização.

Numa escala logarítmica podemos observar a evolução da pandemia desde janeiro, sendo que chama atenção o período de quase estabilidade entre início de fevereiro e início de março, mas agora com uma nova aceleração a partir de 10 de março (gráfico 1).

Isso fica claro quando calculamos a evolução da epidemia com base no fator de propagação Ro definido pela equação abaixo, onde N é o numero de dias desde o início do período que está sendo considerado.

[Total de casos] = Ro elevado a N

Note-se que o Ro para os 36 dias desde 15 de fevereiro foi de 1,045, mas nos últimos dez dias já subiu para 1,087.

Essa aceleração do Ro mundial se deve claramente à perda de protagonismo da China, que no início tinha a quase totalidade dos casos. Veja como a evolução na China já era de desaceleração ao fim de fevereiro e evoluiu agora para virtual estabilidade, com o total de casos mantido próximo a 81 mil desde inicio de março (gráfico 2).

A aceleração na evolução do total mundial nos últimos dez dias foi resultado da entrada em cena de novos países. A tabela 1 (acima) mostra os sete países com maior número de casos com os valores calculados para os respectivos Ro nos dez dias entre 12 e 22 de março.

Desaceleração é inevitável; relevante é saber quando vai estabilizar e com quantos infectados e mortos

Note que os valores para Ro oscilam entre 1,34 (para Estados Unidos) e 1,00 (para China). Note também que o Ro é menor nos países que estão com epidemia por mais tempo, como China, Irã e Itália, e maior em “novatos” como EUA, Espanha, Alemanha e França. Interessante também notar na última coluna a relação entre total de casos e população. No caso da China estamos considerando apenas a população da província de Hubei, já que essa região foi completamente isolada pelo governo, como se fora um país independente.

Então o fato mais importante e surpreendente a se extrair dessa tabela é que a epidemia parece totalmente controlada em Hubei, com uma incidência de apenas 0,14%, isto é, 14 casos para cada 10 mil habitantes. Na Itália, onde já dá para perceber uma evidente perda de velocidade, a incidência é de 0,10%, isto é, 10 casos para cada 10 mil habitantes (gráfico 3).

Já no caso do Irã, outro “veterano”, que parece também próximo de estabilizar a epidemia, a incidência é de apenas 0,03%, isto é, 3 casos por 10 mil habitantes (gráfico 4).

A Espanha está também avançada na epidemia, mas ainda com Ro de 1,25. A incidência aqui é de 0,06%, isto é, 6 casos por 10 mil habitantes. Se a incidência evoluir para os 0,14% da China, o número de infectados chegará a 67 mil (gráfico 5).

Os Estados Unidos parecem ter o caso mais desconfortável em números absolutos. Se no processo de evolução do Ro do atual 1,34 em direção à unidade a incidência evoluir do atual 0,01% para o 0,14% chinês, o total de casos subirá para 453 mil habitantes.

De qualquer forma o que precisa ser enfatizado é que estamos falando de níveis de incidência surpreendentemente baixos, quando comparados, por exemplo, aos 25% da população estimados para o caso da gripe espanhola de 1918. Isso parece ser resultado de avanços importantes de medicina que foram em grande parte devidos aos chineses e que possibilitaram uma estratégia de controle que combina dois vetores principais, os equipamentos de teste para diagnóstico precoce e uma politica dura de confinamento.

O que o confinamento consegue fazer é reduzir o universo de possíveis alvos de infecção disponíveis para o vírus individual e seus descendentes a um número pequeno de humanos confinados. Por exemplo, se esse universo fica em média restrito a um grupo de cem humanos e a evolução do vírus segue um modelo exponencial com Ro igual a 2, então na melhor das hipóteses (para ele, naturalmente) poderá ter seis “rodadas” de reprodução, já que 2 elevado a 7 já é igual a 128 e maior do que 100. Já se o Ro for de apenas 1,10, ele poderia ter até 48 rodadas de reprodução, pois 1,1 elevado a 48 igual a 97. Desta forma com o confinamento, as mutações menos agressivas do vírus, aquelas com Ro menor, tendem a proliferar em detrimento às mutações mais agressivas. O resultado é que a infecção eventualmente desaparece ou se torna endêmica, como acontece com a gripe sazonal normal.

E como fica o Brasil? No nosso caso, a epidemia, que tem pouco mais de um mês, ainda apresenta Ro próximo a 1,3 e não há qualquer indicação de perda de velocidade (gráfico 6).

Agora sabemos que com o confinamento a desaceleração é inevitável e as questões relevantes são quanto tempo vai levar para estabilizar e com quantos infectados e mortos. Podemos adotar a hipótese de que a epidemia vai se concentrar nas regiões Sul e Sudeste, até porque o clima frio do próximo inverno vai favorecer isso. Então estamos falando de uma população de 118 milhões. Se a taxa de incidência no momento da estabilização for igual ao 0,14% chinês, então vamos ter um total de 165 mil infectados. Com uma taxa de fatalidade na faixa de 2% a 4%, isto vai significar um número de vítimas fatais entre 3.300 e 6.600.

Quanto tempo vai levar para chegarmos ao fim desse processo? Isso vai depender do valor médio do fator de propagação Ro ao longo do processo de convergência. Se esse Ro médio for de 1,15, o que nos parece uma hipótese razoável, serão necessário 33 dias, ou seja, a estabilização vai acontecer na altura de 25 de abril próximo. Se, como resultado de um confinamento mais duro, o Ro médio for de 1,08 serão necessários 60 dias, ou seja, vai acontecer na altura de 22 de maio próximo.

2) A Recessão de 2020

Nossa análise da evolução da covid-19 sugere que estaremos submetidos a uma política de confinamento e quarentena por um período de um a dois meses. Esta é a informação básica para construir nosso cenário de projeção, mas há que se ter em mente que isto ainda é um exercício com grandes incertezas neste momento. Somente a publicação dos primeiros dados pós-crise vai permitir uma calibragem um pouco mais segura.

Em termos do PIB total (usando o conceito usual de variação média anual), nossa projeção é de uma queda de 0,6%. A indústria de transformação lidera a retração com queda de quase 5%, com destaques para bens duráveis de consumo (menos 15%) e bens de capital (menos 10%). Esses números específicos refletem a hipótese de que esses setores vão entrar agora em férias coletivas ou o equivalente por um ou dois meses.

Na indústria geral, a extrativa mineral ainda vai mostrar crescimento positivo devido à base de comparação muito deprimida de 2019. As utilidades públicas também serão pouco afetadas pela epidemia. A construção civil sofrerá alguma desaceleração, atrasando temporariamente o importante movimento de recuperação que já estava em curso (tabela 2).

O PIB agropecuário ainda deve apresentar crescimento significativo (de 2,9%), refletindo a grande expansão da área plantada já ocorrida e a possibilidade de administrar qualquer retração momentânea da demanda com uma politica de estocagem.

A maior incógnita é talvez o PIB serviços, até porque o IBGE alterou sua metodologia em 2012. Por razões óbvias, teremos variações negativas em comércio (quase -3%) e transporte (-2,3%). O PIB outros serviços está com alguma variação negativa (de menos 0,8%) devido ao impacto da crise sobre turismo, hotelaria e serviços profissionais em geral. Os demais setores terão taxas marginalmente positivas, mas o agregado do setor fecha este ano com uma queda de quase 0,5%.

Importante também notar que a recuperação da trajetória de crescimento do PIB vai ocorrer de forma rápida já a partir do primeiro trimestre de 2021 - e nosso cenário de longo prazo permanece inalterado (tabela 3).