O Estado de São Paulo, n.46176, 21/03/2020. Política, p.A4

 

Bolsonato confronta ação de Estados, que reagem

21/03/2020

 

 

Presidente diz que medidas tomadas por governadores para evitar contágio da covid-19 vão prejudicar economia e enfraquecê-lo politicamente; Doria (SP) e Witzel (RJ) criticam

O presidente Jair Bolsonaro criticou ontem medidas adotadas por governadores para evitar a disseminação do coronavírus. Na visão dele, ações como o fechamento do comércio, adotado nas maiores cidades do País e defendido por especialistas, podem prejudicar a economia e serem usadas para enfraquecêlo politicamente. O paulista João Doria (SP) afirmou que os chefes do Executivo estão tomando atitudes porque o presidente se omite. Wilson Witzel (PSC), do Rio, classificou como "passo de tartaruga" a velocidade do Planalto em dar respostas à crise.

As críticas aos governadores foram feitas nas duas vezes em que Bolsonaro apareceu publicamente ontem. "Tem certos governadores que estão tomando medidas extremas, que não competem a eles, como fechar aeroportos, rodovias, shoppings e feiras", disse o presidente, pela manhã, ao deixar o Palácio da Alvorada. Mais tarde, numa entrevista coletiva, ele voltou ao assunto. "Tem um governo de Estado que só faltou declarar independência do mesmo", afirmou, sem detalhar sobre a que se referia.

"Tem uns falando em liberar pedágio, energia. Aí cria expectativa. O governo federal e estadual não têm condições de bancar isso. Essas falsas expectativas não podem vir no bojo de uma campanha política", declarou o presidente. Dois dos chefes de Executivo estadual que reagiram às falas de Bolsonaro já demonstraram pretensão de concorrer às eleições em 2022.

"Estamos fazendo o que deveria ser feito pelo líder do País, o que o presidente Jair Bolsonaro, lamentavelmente, não faz. E, quando faz, faz errado", criticou Doria, que virou adversário do presidente ainda no ano passado, embora tenha vencido a eleição de 2018 amparado no "BolsoDoria".

Bolsonaro disse ter ficado "preocupado" ao saber que Witzel decidira fechar as divisas do Estado e suspender o transporte de passageiros por terra e ar. A medida afeta voos nacionais e internacionais. A Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) chegou a divulgar nota dizendo que caberia à União determinar o fechamento. Também adversário político do presidente, Witzel criticou o uso político da crise. "O governo federal precisa entender que não é hora de fazer política", escreveu o governador fluminense no Twitter. "É hora de trabalhar e ajudar os empresários que vão quebrar, as pessoas que vão perder o emprego e os que vão morrer de fome".

Apesar dos ataques feitos ontem, o presidente afirmou que está a disposição dos Estados. "Nossos ministros estão todos solícitos, ninguém está orientado a fugir de ninguém. Não terá qualquer discriminação para qualquer governador."

A crítica aos governadores é só mais um episódio da relação conflituosa entre o presidente da República e a Federação. Bolsonaro entrou em conflito com governadores ao culpá-los por não baixar o preço da gasolina e ao comparar a morte do miliciano Adriano Magalhães da Nóbrega, baleado pela polícia da Bahia, à "queima de arquivo do caso Celso Daniel".

"É a visão dele (Bolsonaro). Ele, como nós, tem o direito de pensar diferente. Eu pessoalmente estou tratando do assunto (coronavírus) sem politizar, até porque política não deve se misturar com problemas de saúde graves como esse", disse o governador do Distrito Federal, Ibaneis Rocha (MDB). Assim como aconteceu em São Paulo e no Rio, o governo do Distrito Federal determinou o fechamento do comércio por causa do novo coronavírus.

Nos últimos dias, o presidente divergiu até mesmo de aliados, como o governador de Goiás, Ronaldo Caiado (DEM). Médico, Caiado foi vaiado no domingo, quando dispersou manifestantes que defendiam o governo federal e protestavam contra o Congresso e o Supremo Tribunal Federal (STF).

Conselhos. Até agora, Bolsonaro não tem ouvido auxiliares do Planalto que o aconselham a chamar pelo menos uma videoconferência com governadores, como fez ontem com empresários, para alinhar medidas de combate ao coronavírus. Ele não admite ter demorado a tomar atitudes para combater a doença nem ignorado a pandemia. Ainda ontem, porém, Bolsonaro voltou a minimizar a pandemia. "Depois da facada, não vai ser uma gripezinha que vai me derrubar", afirmou (mais informações na pág. F1).

No mesmo dia que o País confirmou a 11.ª morte pelo novo coronavírus, o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, disse que até o fim de abril haverá um "colapso" no sistema de saúde por causa da velocidade com que a doença avança. O presidente Jair Bolsonaro, por outro lado, voltou a minimizar a pandemia, tratando o vírus que já matou mais de 10 mil pessoas no mundo como uma "gripezinha" em entrevista concedida após a declaração do auxiliar.

O presidente e o ministro têm demonstrado um descompasso nas declarações sobre a crise. O alerta de Mandetta foi dado durante videoconferência com Bolsonaro e 22 empresários de vários setores. Segundo o ministro, o "colapso" significa você ter recursos, mas não ter capacidade para atendimento dos doentes. "Você pode ter o dinheiro, o plano de saúde, mas simplesmente não há sistema (de saúde) para você entrar."

"A Itália que tem sistema de primeiro mundo, mas pela característica de ter população extremamente idosa, o tempo que ela suportou foi muito baixo. Temos alguns Estados que nos preocupam mais: o Rio Grande do Sul tem a maior faixa etária. Temos a Região Amazônica, que praticamente não tem caso. Nós somos um continente", observou o ministro.

A projeção de Mandetta é de que a velocidade de propagação da doença deve aumentar nas próximas semanas e o número de casos só começará a cair em setembro. "A gente deve entrar em abril e iniciar a subida rápida. Isso vai durar os meses de abril, maio, junho, quando ela vai começar a ter uma tendência de desaceleração. O mês de julho deve começar o platô. Em agosto, o platô vai começar a mostrar tendência de queda e aí a queda em setembro é profunda, tal qual a de março na China."

O Ministério da Saúde declarou ontem estado de transmissão comunitária em todo o Brasil, o que significa admitir não ser mais possível rastrear qual a origem da infecção, indicando que o vírus circula entre pessoas que não viajaram ou tiveram contato com quem esteve no exterior – só dois Estados ainda não relataram casos.

Portaria, publicada em edição extra do Diário Oficial da União, também oficializa recomendações para restringir a circulação de pessoas acima de 60 anos, além de orientar o "isolamento domiciliar" de quem tiver "sintomas respiratórios" e daqueles que moram com elas. O prazo estabelecido é de, no máximo, 14 dias. A pasta também estendeu a pessoas que residam no mesmo endereço de alguém com sintomas de gripe a possibilidade de solicitar um atestado médico para justificar a ausência no trabalho.

Diante do agravamento do cenário, Bolsonaro fez um apelo ontem por uma maior "conscientização" da população em relação ao enfrentamento do vírus. No entanto, ao ser questionado pelo Estado se divulgaria o resultado dos dois exames que realizou para saber se havia contraído a covid-19, voltou a se referir à doença como algo menor. "Depois da facada, não vai ser uma 'gripezinha' que vai me derrubar", disse o presidente, repetindo o gesto de usar máscara cirúrgica nas suas declarações à imprensa. Na semana passada, Bolsonaro se referiu à crise da pandemia como uma "fantasia".

Vítimas. A sexta-feira foi marcada pelo maior número de mortes registradas em um mesmo dia. Foram quatro, todas em São Paulo, onde os óbitos já chegaram a nove. As vítimas são idoso que já tinham outras doenças quando contraíram o coronavírus. Três são homens (de 70, 80 e 93 anos) e a outra é uma mulher de 83 anos. O número de casos confirmados também saltou de 621 casos para 904. O índice de letalidade está em 1,2%.