Valor econômico, v.20, n.4970, 30/03/2020. Brasil, p. A7

 

Entrevista - Gabriel Ulyssea

Anai's Fernandes

30/03/2020

 

 

Lentidão e desencontro caracterizam a ação do governo brasileiro para mitigar os efeitos do coronavírus não só na saúde, mas também no mercado de trabalho, avalia Gabriel Ulyssea, professor associado da Universidade de Oxford, com PhD em economia pela Universidade de Chicago. Para ele, medidas iniciais demonstraram “profundo desconhecimento” da economia do país.

Um grande perigo desta crise, segundo Ulyssea, é que famílias sejam “empurradas” para a pobreza, condição difícil de ser revertida posteriormente. Ele diz ainda que é falsa a ideia de que, sem quarentena, custos da crise serão evitados. Leia a seguir os principais trechos da entrevista.

 Valor: Como a crise atual afeta o mercado de trabalho no Brasil?

Gabriel Ulyssea: Acho que virá uma recessão severa, possivelmente tão intensa quanto, se não mais, que a recessão com a crise financeira, em 2009, porque foi um golpe violento em todas as economias e ainda está em curso. Tem muita incerteza sobre o que vai acontecer, a duração, como será o retorno da quarentena e se haverá outras. A quarentena tem aspecto regressivo forte, já que, no geral, quem tem condição de seguir trabalhando, fazer ‘home office’, são pessoas de maior qualificação e salário. Os menos qualificados tendem a ser mais afetados, justo eles que costumam ter menos colchão de renda e se mantêm com o fluxo mensal.

Valor: Existe, então, um impasse nas decisões de confinamento?

Ulyssea: Concordo com o Arminio Fraga [ex-presidente do Banco Central], há uma falsa ideia de que, se não houver quarentena, não haverá custo econômico. A atividade não vai recuperar se a quarentena for suspensa. A crise está aí, as pessoas estão assustadas, elas não vão correr para lotar aviões, restaurantes, cinemas. A evidência que acho mais convincente aponta a importância da quarentena para achatar a curva de contágio, principalmente em um país como o Brasil, com carência de infraestrutura de saúde. Pode ser determinante para salvar vidas não só de idosos. No Brasil e outros países em desenvolvimento, há incidência maior de condições de saúde associadas à mortalidade por covid-19 em pessoas mais jovens, e exatamente entre os mais pobres. Podemos ter uma combinação explosiva. Falar em trocar vidas por recuperação da atividade é um dilema social e econômico equivocado. Estudos apontam custo alto de não agir logo - e já não fomos enfáticos no começo.

Valor: Como avalia a atuação do governo diante da crise?

Ulyssea: A primeira característica é que ela tem sido lenta e desencontrada, nas políticas de saúde e econômicas. A impressão é que não há coordenação e abordagem integrada. A política é feita no varejo, pedaços aqui e ali. Fica uma colcha de retalhos que, claro, até vai na direção certa de tentar amortecer o impacto. Mas aquele pacote [com antecipação de abono salarial e 13º salário] refletiu profundo desconhecimento da realidade da economia. Dizia ajudar os vulneráveis e excluía quase metade da força de trabalho, os informais e conta própria. Finalmente, o governo parece ter entendido que tem de dar ênfase, se não maior, ao menos igual a eles, que têm mais risco de transitar à pobreza.

Valor: Vamos ver o número de brasileiros na pobreza aumentar?

Ulyssea: É um dos grandes perigos desta crise. Já vínhamos em uma deterioração do mercado de trabalho, com aumento da informalidade. Eles não têm seguro-desemprego, abono, não estão cobertos pela lei trabalhista. Esses contratos têm maior incidência entre os menos qualificados que, como disse, em geral não têm colchão. Um choque negativo de renda nessas famílias pode empurrar contingente substancial para a pobreza. E esse é um estado muito difícil de sair, depois de um tempo tende a absorver a pessoa. Fazer a transição exigiria de novo um arsenal de políticas públicas. O ideal é evitar, e a medida do Congresso [auxílio de R$ 600] vai nessa direção.

Valor: Esse valor é suficiente?

Ulyssea: O valor exato é difícil de determinar. Uma família que recebe Bolsa Família, com R$ 600, vai ter até aumento na renda. Um chefe de família que ganhava R$ 2.000 vai ter perda substancial se essa for a única fonte.

Valor: Como outros países têm socorrido trabalhadores?

Ulyssea: O Reino Unido talvez esteja com uma das políticas mais agressivas de manutenção de renda, com pagamento de 80% do salário, até um limite. Tem uma preocupação importante - que talvez estivesse por trás daquela medida provisória desastrosa, em que o governo voltou atrás na suspensão do pagamento do salário - que é manter o vínculo empregatício. Desfazer isso é perder também capital intangível, porque a relação criada entre empresa e trabalhador tem valor produtivo.

Valor: Como nosso governo pode “encontrar” os mais vulneráveis?

Ulyssea: O Cadastro Único tem uma cobertura entre os mais pobres bem alta, imperfeita, mas boa. Mas é necessário um esforço de cadastramento e, de novo, estamos atrasadíssimos. Outras ideias circulam. Como a cobertura de celular é quase 100% na população, poderia criar uma base de CPFs ativos a partir dos cadastros das operadoras. Trabalhadores formais seriam excluídos cruzando com a RAIS [Relação Anual de Informações Sociais]. Se o governo operar de forma integrada, pode usar o Imposto de Renda, para “limpar” rendas mais altas, e os cadastros de pensionistas e BPC, se não quiser incluir quem já tem uma renda preservada.

Valor: E para o Bolsa Família?

Ulyssea: Uma coisa colocada como resposta à crise é a eliminação da fila. Isso é dívida social, já deveria ter sido sanada. Poderia sim ter um complemento - o Marcelo Medeiros, do Ipea [Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada], tem proposta estruturada -, mas precisa enfatizar que é política temporária, não é hora de discutir aumento permanente. Outra ideia, que não custa dinheiro, mas impacta o curto prazo, é o governo facilitar a realocação de mão de obra de setores mais afetados para aqueles que podem enfrentar escassez. Há a plataforma do Sine [Sistema Nacional de Emprego], que ainda tem cobertura baixa. Isso poderia ser feito via regime temporário de contratação formal criado para a crise, em contrato de três meses, renovável por mais três, sem custo de demissão, FGTS, imposto na folha, mas com seguro-desemprego proporcional.

Valor: O governo diz que as medidas são anunciadas em “ondas” porque o Brasil não tem margem de recursos se errar. Você concorda?

Ulyssea: A primeira reação foi dizer que a forma de lidar com a crise seria aprovar reformas, como a administrativa e a tributária. Isso é errado e quase uma desfaçatez, porque eles estão para apresentar e não fazem. Reformas terão impacto zero no curto prazo. O Brasil tem sim restrição orçamentária mais severa do que outros países. Mas um coisa, que até o Persio Arida [ex-presidente do BC] escreveu, é aumentar dívida por irresponsabilidade fiscal, outra é porque vivemos um período extraordinário. A sinalização das medidas anunciadas a conta-gotas é que ou não entendiam a magnitude do problema ou preferiam ignorar questões cruciais. Então, não é só medo de errar ou de não ter espaço para isso, acho que reflete uma visão de mundo em última instância.