O Estado de São Paulo, n.46178, 23/03/2020. Metrópole, p.F2

 

Pesquisa de vacina se torna uma competição global

David E. Sanger

David D. Kirkpatrick

Sui-Lee Wee Katrin Bennhold

23/03/2020

 

 

Só se passaram 3 meses e China, Europa e Estados Unidos saíram em disparada para se tornarem os primeiros a produzir imunizante

Está em curso uma corrida armamentista global por uma vacina contra o coronavírus. Nos três meses que se passaram desde que o vírus começou a se espalhar, China, Europa e Estados Unidos saíram em disparada para se tornarem os primeiros a produzir a vacina.

Mas, ainda que exista cooperação em muitos níveis, paira sobre o esforço a sombra de uma abordagem nacionalista que poderia dar ao vencedor a chance de beneficiar a própria população e ganhar vantagem para lidar com as consequências econômicas e geoestratégicas da crise. O que começou como uma questão de quem receberia os elogios científicos, as patentes e, finalmente, as receitas por uma vacina bem-sucedida, de repente se tornou uma questão mais ampla e urgente de segurança nacional.

E por trás da disputa há uma dura realidade: qualquer nova vacina que se mostre eficaz contra o coronavírus – já estão sendo realizados ensaios clínicos em Estados Unidos, China e Europa – certamente será escassa, pois os governos farão de tudo para garantir que a própria população seja a primeira da fila.

Na China, mil cientistas estão trabalhando no imunizante, e o problema já foi militarizado: pesquisadores afiliados à Academia de Ciências Médicas Militares desenvolveram o que é considerada a vacina com maior chance de sucesso e estão recrutando voluntários para ensaios clínicos. A ideia é “não ficar para trás dos outros países”, disse Wang Junzhi, especialista em controle de qualidade de produtos biológicos da Academia Chinesa de Ciências, na terça-feira, em Pequim. O esforço ganhou feições de propaganda. Já foi denunciada como fake uma fotografia compartilhada de Chen Wei, virologista do Exército de Libertação Popular, recebendo uma injeção do que seria a primeira vacina, em uma viagem que ela fez a Wuhan, onde surgiu o vírus.

O presidente Donald Trump vem conversando em reuniões com executivos do setor farmacêutico sobre maneiras de garantir a produção de uma vacina em solo americano, para garantir que os Estados Unidos controlem sua distribuição. Autoridades do governo alemão disseram acreditar que o presidente americano tentou atrair uma empresa alemã, a CureVac, para fazer a pesquisa e produção de uma possível vacina nos Estados Unidos. A empresa negou ter recebido uma oferta de aquisição, mas seu principal investidor deixou claro que houve algum tipo de abordagem.

Questionado pela revista alemã Sport 1 sobre como se deu o contato, Dietmar Hopp, cuja Dievini Hopp BioTech Holding detém 80% da empresa, disse não ter conversado “pessoalmente com o presidente Trump”. “Ele falou com a empresa, e imediatamente eles me contaram e perguntaram o que eu pensava, e desde o primeiro momento, concluí que era algo fora de cogitação.”

O relato da abordagem foi suficiente para levar a Comissão Europeia a encaminhar mais US$ 85 milhões à empresa, que já contava com o apoio de um consórcio europeu de vacinas. No mesmo dia, uma empresa chinesa ofereceu US$ 133,3 milhões por uma participação acionária em outra empresa alemã na corrida da vacina, a BioNTech. “Houve um despertar global para a noção de que a biotecnologia é uma indústria estratégica para nossas sociedades”, disse Friedrich von Bohlen, diretor da holding que detém 82% da CureVac.

E, assim como as nações fizeram questão de construir os próprios drones, seus próprios aviões stealth e as próprias armas cibernéticas, elas não querem depender de uma potência estrangeira para ter acesso aos medicamentos necessários na hora da crise. Depois de duas décadas terceirizando a produção de medicamentos para a China e a Índia, “queremos todo o processo de produção perto de casa”, disse Von Bohlen.

Alguns especialistas veem a concorrência geopolítica como algo saudável, desde que todos os sucessos sejam compartilhados com o mundo – o que as autoridades governamentais sempre dizem que vão fazer. Mas elas não dizem como, ou, mais importante, quando. E muitos analistas lembram o que aconteceu durante a epidemia de gripe A em 2009: exigiu-se que a empresa australiana que foi uma das primeiras a desenvolver uma vacina de dose única atendesse à demanda da Austrália antes de receber os pedidos de exportação para os Estados Unidos e outros países.

Isso provocou indignação, teorias da conspiração e audiências no Congresso sobre as razões da falta de vacinas. “Queremos que todos cooperem, que todos corram o mais rápido possível rumo à vacina e os melhores candidatos avancem”, disse o Dr. Amesh Adalja, do Centro de Segurança em Saúde da Universidade Johns Hopkins.

Executivos das principais empresas farmacêuticas do mundo disseram na quinta-feira que estavam trabalhando juntos e com os governos para garantir que uma vacina seja desenvolvida o mais rápido possível e distribuída de forma equitativa. Mas eles imploraram aos governos que não monopolizem a vacina que vier a ser desenvolvida, dizendo que isso seria devastador para o objetivo mais amplo de eliminar a pandemia de coronavírus.

“Gostaria de aconselhar a todos a não entrarmos na armadilha de dizer que agora temos de guardar tudo em nossos países e fechar fronteiras”, disse Severin Schwan, executivo-chefe da Roche, uma empresa farmacêutica suíça. “Seria completamente errado adotar um comportamento nacionalista que realmente atrapalharia as cadeias de suprimentos e prejudicaria as pessoas no mundo todo.”

Sem bloqueios. São os governos que decidem como a vacina é aprovada e onde ela pode ser vendida. “Se os países disserem: ‘Vamos bloquear o suprimento para que possamos proteger nossa população’, então será um desafio levar a vacina para os locais onde ela pode fazer a maior diferença em termos epidemiológicos”, disse Seth Berkley, executivo-chefe da GAVI, uma organização sem fins lucrativos que fornece vacinas para os países em desenvolvimento.

Cientes desses perigos, vários governos europeus e grupos sem fins lucrativos já tomaram medidas para impedir que os Estados Unidos ou a China tenham monopólio sobre uma potencial vacina contra o coronavírus. Depois que a epidemia de ebola atingiu a África Ocidental entre 2014-16, Noruega, Grã-Bretanha e outros países, sobretudo europeus, juntamente com a Fundação Bill & Melinda Gates, começaram a contribuir com milhões de dólares para uma organização multinacional, a Coalition for Epidemic Preparedness Initiative (Coalizão para Iniciativas de Preparação para Epidemias), para financiar a pesquisa de vacinas.

Todos os seus acordos de financiamento incluem cláusulas para acesso igualitário, garantindo que “as vacinas apropriadas estejam disponíveis para as populações quando e onde forem necessárias para interromper um surto ou reduzir uma epidemia, independentemente da capacidade de pagamento”, informou a organização em comunicado. Nos últimos dois meses, a coalizão financiou pesquisas sobre oito das vacinas mais promissoras contra o coronavírus – até na CureVac. E tudo isso deixa ainda mais obscuro o que exatamente Trump queria com a CureVac. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU