O globo, n. 31648, 31/03/2020. Especial Coronavírus, p. 4

 

Sem holofote, com posição

31/03/2020

 

 

 Bolsonaro submete Mandetta a comitê mas ministro mantem discurso tecnico

No dia seguinte ao presidente Jair Bolsonaro contrariar as recomendações das autoridades de saúde e fazer um tour pelo Distrito Federal, o governo decidiu centralizar no Palácio do Planalto as entrevistas sobre o combate ao coronavírus, retirando assim parte da autonomia da equipe do ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta.

Apesar da tentativa de mostrar uma união do Executivo sobre o tema, o ministro defendeu no andar embaixo ao que presidente trabalha a necessidade de se manter restrições à circulação de pessoas — o ministério defende o isolamento social, segundo o qual quem pode permanece em casa, garantindo a segurança dos que trabalham em serviços essenciais, como profissionais da saúde, transporte, abastecimento e fábricas.

Mandetta também disse ao GLOBO “não recomendar” atitudes como o passeio do presidente, e que as orientações devem valer “para todos”. O ministro aceitou perder protagonismo, mas disse a aliados que deseja ter respeitado o espaço de atuação técnica de sua equipe.

Aliados do ministro da Saúde dizem que ele já estava preparado para uma reação de Bolsonaro. Depois da dura reunião no sábado, no Palácio da Alvorada, Mandetta afirmou a pessoas próximas que faria de tudo para evitar uma polarização com o presidente. O ministro passou a dizer que a tensão política não poderia contaminar a condução técnica do tema. Por isso, afirmou que, para evitar atritos, estaria disposto a sair do holofote.

A única preocupação de Mandetta, dizem aliados, era ter a garantia de que poderia continuar defendendo suas posições —mesmo que elas não fossem respaldadas por Bolsonaro. A avaliação no governo é a de que o presidente não deixará de dizer o que pensa, mas os trabalhos serão pautados por orientações da ciência e da medicina. Um aliado resumiu: o ministro não “esperneou” ao ser tutelado.

Além do novo formato de entrevista, um ofício da Casa Civil obriga ainda que todas as notas emitidas por ministérios sejam antes avalizadas pela Secretaria de Comunicação da Presidência da República.

Braga Netto enfatizou na coletiva que as mudanças ocorrem porque “a questão do coronavírus é transversal”. Enquanto Mandetta, reforçou que continuará guiando o trabalho da pasta da mesma forma:

— Sempre técnico, sempre científico, o máximo que puder fazer para sempre preservar vidas.

Braga Netto fez questão de descartara existência de qualquer ideia de demissão do ministro.

—Deixar claro para vocês: não existe essa ideia de demissão do ministro Mandetta. Isso aí está fora de cogitação. No momento. Tá certo? Não existe — disse o titular da Casa Civil. Mandetta comentou: —Empo lítica, quando fala“não existe ”, apessoa já fala“existe ”.

Depois, o ministro admitiu que “está todo mundo estressado” no governo, mas reiterou seu desejo de continuar. Voltou, porém, a contrariar Bolsonaro, defendendo medidas restritivas à circulação adotadas pelos governadores.

— Por enquanto mantenham as recomendações dos estados, porque nesse m om en toé a medida mais recomendável, porque temos muitas fragilidades

ainda no sistema de saúde.

No Planalto, a avaliação é que, além do destaque de Mandetta na crise incomodar Bolsonaro, a mudança se justifica porque a pasta da Saúde não estava conseguindo sozinha dar vazão a medidas para tentar conter o avanço da pandemia no país. A ideia é que o gabinete de crise concentre a operação, por exemplo, da entrega de equipamentos de proteção aos profissionais da saúde.

O novo formato de entrevista impediu que o ministro respondesse a um questionamento direto sobre o tour feito pelo presidente por cidades satélites de Brasília. As perguntas foram encerradas sob o argumento de o tempo estipulado havias e encerrado. Questionado pelo GLOBO depois, Mandetta respondeu:

—A questão é a seguinte: eu tenho um problema muito grande para tocar, que é uma pandemia. E eu tô focado nela. São questões secundárias. Só repito: não recomendamos. Permanece a recomendação do Ministério da Saúde para todos, para você, para o seu chefe de redação, para todos.

"AFROUXAMENTO”

Ontem pela manhã, Bolsonaro disse saber da responsabilidade que tem na crise e criticou quem, segundo ele, está tirando proveito da situação para assumir o poder.

— Vamos enfrentar problema? Ou o problema é o presidente? — indagou a apoiadores.

Uma mulher que estava próximo pediu ao presidente que apoie o ministro da Saúde. Ele não respondeu e afirmou que “vai morrer gente” e que o país tem dois problemas: “o vírus e o desemprego”. Em entrevista à Rede TV, no início da noite, voltou a criticar medidas de isolamento horizontal, que preserva a circulação de trabalhadores em serviços essenciais:

— Você não pode impor esse isolamento de forma quase que eterna, como alguns Estados fizeram. Tem que afrouxar paulatinamente para que o desemprego não aumente.

Além do Twitter, Facebook e Instagram também tirar do ar vídeos gravados pelo presidente durante o tour que fez pelo Distrito Federal sob o argumento de que foram violadas regras com a promoção de “desinformação”.

REAÇÃO NOS PODERES

O presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Dias Toffoli, defendeu a manutenção da estratégia de isolamento como ferramenta para conter a disseminação do coronavírus e evitar um pico de contaminações que leve o sistema de saúde ao colapso. O presidente da Corte ressaltou que serviços essenciais estão mantido seque há ferramentas, a exemplo das permitem a continuidade das atividades.

— Tudo que tem ocorrido no mundo leva a crer para essa necessidade do isolamento, realmente, que é para puxara diminuição da curva (de contaminações) e possibilitar atendimento de saúde para a população em geral —afirmou Toffoli.

O Senado, por sua vez, divulgou um manifesto em defesa do isolamento. No texto, o Senado se manifesta “de acordo com as recomendações da Organização Mundial de Saúde e apoia o isolamento social no Brasil, ao mesmo tempo em que pede ao povo que cumpra as medidas ficando em casa”.

O presidente argentino, Alberto Fernández, também criticou Bolsonaro:

— Temo que, com esta lógica, (o Brasil) entre no mesmo espiral (de contágios) em que entraram Espanha, Itália ou EUA.