Correio braziliense, n. 20779 , 13/04/2020. Brasil, p.4

 

O risco da Covid-19 entre os mais pobres

Maria Eduarda Cardim

Maíra Nunes

13/04/2020

 

 

O desafio de conter a alta transmissão do novo coronavírus é ainda maior nas comunidades carentes, onde a ausência do poder público é crônica. População que vive em condições precárias de saúde e moradia fica mais vulnerável à doença

O novo coronavírus não discrimina cor ou classe social em relação ao contágio. No entanto, tende a ameaçar de forma mais grave os carentes. Dados do Ministério da Saúde mostram que a Covid-19 é mais letal entre negros e pardos. Dos hospitalizados com Síndrome Respiratória Aguda Grave, 23,9% são dessa camada da população, mas eles chegam a representar 34,3% dos mortos por Covid-19. Já com a população branca, a situação é oposta: o número de óbitos é menor do que o de internados. Eles representam 73% dos hospitalizados e 62,9% das mortes. Segundo especialistas, a classe e a condição social da população preta podem estar por trás da diferença nos números.

A clínica médica Patricya Tavares acredita que a condição social dessa população influencia diretamente na letalidade do vírus. “A gente ainda não sabe, de fato, por que essa letalidade é maior em negros e pardos, mas essa população geralmente tem uma condição social pior. É uma população, muitas vezes, subnutrida, que não faz acompanhamento médico e tem mais chances de ter outras comorbidades”, alerta.

A profissional especializada em longevidade explica que a maioria das vítimas ainda é branca porque o vírus foi importado de outros países, e os dados ainda refletem isso. “Agora é que essa doença está chegando às comunidades mais pobres e sabemos que, lá, fazer um isolamento é complicado. São muitas pessoas vivendo na mesma casa, pessoas que precisam trabalhar para comer, e são situações difíceis”, afirma. Um dos cenários que mais preocupam especialistas começam a se confirmar na prática. No Rio de Janeiro, várias comunidades carentes já registraram as primeiras mortes por Covid-19.

Entre as maiores favelas do país, a Rocinha, que abriga 100 mil habitantes, soma dois óbitos, além de 33 casos confirmados pela Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro até ontem à noite. A Cidade de Deus, cenário de livro e adaptação cinematográfica que recebeu quatro indicações ao Oscar, também teve uma morte confirmada, além de quatro casos.

Vigário Geral, comunidade com mais de 40 mil moradores na zona norte do Rio, contabiliza outras duas mortes pela Covid-19 e seis casos confirmados. Também na zona norte carioca, Manguinhos tem um óbito e nove moradores que testaram positivo. O estado do Rio de Janeiro havia registrado, até ontem, 1.996 casos confirmados e 106 mortes.

“A gente sente muito medo, porque a pandemia está cada vez mais perto, principalmente depois da confirmação de um óbito aqui na Maré”, diz Pamela Carvalho, moradora, há 27 anos, da favela Parque União, do conjunto de comunidades da Maré. O complexo, que abriga cerca de 140 mil pessoas de 16 comunidades na zona norte do Rio de Janeiro, registra uma morte pela doença e tem dois casos que testaram positivo.

Pamela conta que a família toda está muito impactada pela perda de um tio, que morreu há poucos dias com suspeita da Covid-19. “Ele não mora aqui na Maré, mora em Inhaúma, também no Rio. Era um homem negro, de 55 anos, e segurança. É um perfil racial e econômico das classes mais baixas”, destaca.

Desafios

Entre os desafios de conter a alta transmissão do novo coronavírus nas favelas está a ausência do poder público. “Questões que são históricas nas favelas e periferias do Rio de Janeiro, como casas geminadas, muitas casas dentro de um mesmo quintal, famílias com muitas pessoas que residem em uma mesma casa com espaço físico pequeno”, lista Pamela. O custo do álcool em gel ou mesmo a impossibilidade de algumas famílias terem acesso a água e sabão em casa são apenas mais itens nesse longo rol. “São desafios que foram apenas escancarados com a Covid-19, mas que a gente encara desde sempre, enquanto morador de favela. As favelas são lugares onde os direitos não são garantidos pelo poder público”, ressalta.

A população busca, então, compensar essa ausência por meios próprios. Instituições e organizações da Maré têm organizado campanhas de arrecadação de alimentos e itens de higiene e limpeza. Elas também fazem faixas e circulam com carros de som para informar aos moradores da favela sobre as pessoas que integram os grupos de riscos e as medidas de prevenção aplicadas à realidade econômica e geográfica. “Mas a gente continua tendo que demandar do poder público”, reivindica Pamela.

Uma dessas iniciativas é da organização não governamental Redes da Maré, da qual ela faz parte. A Campanha Maré diz NÃO ao Coronavírus, da ONG em parceria com outras instituições, pessoas físicas e associação de moradores, arrecada doações para ajudar mulheres chefes de família que ficaram sem renda devido ao isolamento social e para fazer e distribuir quentinhas à população de rua.

O novo coronavírus começa a virar realidade nas comunidades carentes de todo o Brasil. Em São Paulo, líderes comunitários das favelas de Paraisópolis e Heliópolis relatam que a doença também já chegou por lá, inclusive com mortes sob suspeita. No Distrito Federal, há casos confirmados em Samambaia (16), Santa Maria (7), São Sebastião (4), Sol Nascente (2), Paranoá (2), Itapoã (1) e Varjão do Torto (1).

A assistente social Jessika Araújo, 32 anos, vive no trecho 3 do Sol Nascente. Ela explica que os moradores da região estão apreensivos, mas se preocupam mais em poder trabalhar. “É uma comunidade carente e muitos dependem do trabalho para colocar comida em casa. É complicado fazer um isolamento social aqui, porque começamos de trás para frente. Vieram primeiro as pessoas para depois virem as coisas essenciais”, pontua.