Valor econômico, v.20, n.4967, 25/03/2020. Brasil, p. A4

 

Votação direta em plenário de marco de saneamento vira opção

Renan Truffi

Vandson Lima

25/03/2020

 

 

Tratado como um dos projetos prioritários do governo, o marco legal do saneamento já tem seu parecer concluído no Senado, negociações avançadas com a equipe econômica, além de contar com a boa vontade dos presidentes das duas casas. O maior obstáculo, no entanto, não é o conteúdo da proposta, mas, sim, a paralisação dos trabalhos legislativos devido à epidemia de coronavírus.

Tasso Jereissati (PSDB-CE), um dos relatores da proposta no Senado, tenta convencer a cúpula da casa a levar o tema direto para o plenário, sem a necessidade de votação nas comissões. Isso porque o Sistema de Deliberação Remota (SDR), o chamado "plenário virtual", ainda não foi testado para comissões mistas ou temáticas, o que tem sido um obstáculo para a retomada dos trabalhos em colegiados como a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ).

Tasso deve conversar nesta semana com o vice-presidente do Senado, Antonio Anastasia (PSD-MG) e sugerir que a Mesa Diretora avoque o marco legal direto para o plenário da casa, sem a apreciação das comissões de Meio Ambiente e Infraestrutura, que seria o trâmite natural da proposta.

Como Anastasia e Tasso têm uma boa relação, a tendência é que o vice-presidente consulte os líderes partidários para sentir se há algum tipo de objeção. Isso porque, entre a cúpula do Parlamento, a avaliação é que o plenário virtual deve apreciar apenas temas consensuais neste momento. Neste sentido, o desafio seria convencer parlamentares do PT e da oposição, que têm se posicionado contra a abertura desse mercado para a iniciativa privada.

O Valor teve acesso ao relatório do senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE), designado para a análise da matéria na Comissão de Meio Ambiente do Senado. Duas mudanças já estão previstas e foram acordadas com o ministro da Economia, Paulo Guedes, e sua equipe.

A primeira e mais importante trata de uma espécie de "penalização intermediária" para as empresas que não atingirem desempenho e metas. De acordo com esse dispositivo, companhias que não cumprirem indicadores de qualidade no serviço de água e esgoto ficam impedidas de fazerem a distribuição de lucros e dividendos entre seus quadros.

A medida seria uma forma de tentar evitar a quebra do contrato, ou seja, busca corrigir problemas antes de interromper os serviços com determinada empresa. "Você precisa induzir o investidor para que ele introduza o investimento de forma mais igualitária, ainda que tenham áreas mais rentáveis do que outras. Assim a gente pode explicar para o cidadão o que ele pode esperar e o que pode ser cobrado [das empresas]", explicou o relator.

A outra sugestão preparada por Alessandro Vieira trata da inclusão obrigatória de conjuntos sanitários no serviço de esgotamento prestado a zonas vulneráveis. Nesse aspecto, o objetivo do relator é garantir que, mesmos nas áreas menos rentáveis, as empresas envolvidas no serviço tenham que entregar um equipamento sanitário mínimo.

"É para você garantir acesso ao esgotamento também nas comunidades mais vulneráveis. O que a experiência internacional aponta? Quando você abre o sistema [de saneamento] para o mercado, você aumenta o volume de investimentos e também a disponibilidade. Só que essa disponibilidade acaba concentrada naquelas localidades em que a operação é mais interessante comercialmente. Isso acaba por deixar de lado regiões hipossuficientes."

Nas negociações, o senador pediu que essas duas mudanças sejam incluídas também na normativa infralegal, quando a proposta for, de fato, aprovada. A inclusão seria uma forma de deixar mais clara referências e obrigatoriedades nos termos de contratação. Segundo Vieira, o Ministério da Economia concordou com o pedido.

Como forma de evitar que o texto tenha que retornar, novamente, para a Câmara, o senador também combinou com a equipe de Guedes que essas mudanças serão feitas por emendas de redação. Na opinião dele, as sugestão não configuram como alteração de mérito e, por isso, não precisam ser submetidas a uma nova análise dos deputados.

Mesmo com a crise provocada pela epidemia de coronavírus, o marco legal do saneamento é uma importante aposta do Ministério da Economia para equilibrar as contas públicas nos próximos anos. De acordo com técnicos da pasta, o projeto pode destravar investimentos de até R$ 700 bilhões somente nesse setor.

O projeto também trata da reestruturação da Agência Nacional de Águas (ANA), que terá de se adequar às novas competências. Sobre isso, o Ministério da Economia diz que já foi instituído um grupo de trabalho, mas as alterações regimentais só poderão ser realizadas após a promulgação do projeto.

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Num país em emergência sanitária, acesso á àgua é precário

Ana Conceição

25/03/2020

 

 

Num momento em que a saúde pública volta aos holofotes e medidas de higiene são um dos principais meios de combate ao coronavírus, um levantamento mostra que o acesso à agua e esgoto tratado continua a desejar - e muito - no Brasil. Dados do Instituto Trata Brasil mostram que menos de um terço (27) das cem maiores cidades brasileiras conseguiram levar abastecimento de água a 100% da população até 2018, o dado mais recente. Outras 18 estão próximas da universalização. Assim, sobram 55 desse grupo de cem maiores que ainda precisam estender o acesso à agua a todos os cidadãos. Para ficar nas capitais, enquanto Florianópolis, Campo Grande e João Pessoa conseguiram estender o acesso a todos, Fortaleza (77,3%), Belém (70,3%), Porto Velho (35,3%) ficam bem atrás.

Na média dessas 100 cidades, e do país, o acesso à agua é mais disseminado que a coleta e tratamento de esgoto, com índices acima de 85%, mas isso não quer dizer que a água sempre chega e com boa qualidade. Dados do Plano Nacional de Saneamento Básico que foi atualizado no ano passado mostram que o acesso à água é precário para 40% da população, ou 81,7 milhões de pessoas. Isso quer dizer que o acesso é insatisfatório ou provisório e "potencialmente comprometedor da saúde humana", diz o relatório. Mesmo em grandes cidades próximas da universalização, como São Paulo e Rio, parte da população em comunidades carentes não tem acesso a água de qualidade. A contaminação da água distribuída pela Cedae, no Rio, é o caso mais rumoroso de uma situação que está longe de ser exceção.

"O Brasil sempre foi muito desigual em abastecimento de água e tratamento de esgoto. É importante lembrar que investimento em saneamento significa a erradicação de várias doenças e diminuição da mortalidade infantil, por exemplo", afirma o professor José Luiz Mucci, do departamento de Saúde Ambiental da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP), que também aponta o problema da baixa qualidade da água em muitas localidades.

Segundo números do Datasus compilados pela Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental (Abes), a taxa de internação por doenças causadas pela falta de saneamento (cólera, febre tifoide, diarreia, gastroenterite, etc) é três vezes maior nas cidades com saneamento precário. Nas cidades de grande porte com saneamento perto da universalização, a taxa é de 20 internações por 100 mil pessoas, nas cidades sem saneamento, de 76.

A ausência do saneamento na lista de prioridades do setor público torna uma população já desprotegida ainda mais vulnerável em situações de emergência sanitária, como nos casos já amplamente conhecidos da dengue, zika e, agora, coronavírus. "Saneamento deveria ser prioridade sempre", diz Mucci, ressaltando que as populações de áreas mais carentes tendem a ter imunidade mais baixa por causa de deficiências nutricionais, o que agrava as consequências das epidemias.

Traçar medidas para enfrentar uma pandemia da proporção do coronavírus em comunidades carentes de saneamento é um desafio complexo, já que a disseminação do vírus pede medidas urgentes, de curto prazo. O pesquisador Leandro Luiz Giatti, também da Faculdade de Saúde Pública da USP, avalia que os governos deveriam aumentar as equipes de atenção básica e saúde da família em comunidades carentes, a fim de levar informação e identificar os mais vulneráveis de forma mais eficiente. "São os agentes de saúde que sabem onde está o morador que tem diabetes, hipertensão. São eles que podem identificar a população de maior risco", diz Giatti, para quem os governos deveriam tomar medidas emergenciais específicas para as localidades mais carentes. Reforçar as equipes de agentes de saúde agora seria importante para diminuir o impacto em áreas que além da falta de saneamento ainda convivem com a coabitação de várias pessoas no mesmo espaço.

Em Piracicaba, único município do levantamento do Trata Brasil que atingiu a marca de 100% de abastecimento de água, coleta e tratamento de esgoto, a reurbanização permitiu levar água a comunidades excluídas da rede, segundo José Rubens Françoso, presidente da Semae, empresa de saneamento local. Na cidade, a empresa é responsável pelo abastecimento de água, enquanto uma parceria público-privada junto com a empresa Aegea cuida do esgoto.

"Desde 2017 estamos reurbanizando comunidades, estendendo a rede de água e fazendo a coleta de esgoto", diz Françoso. O desafio é fazer a rede acompanhar a expansão da cidade, que hoje tem 400 mil habitantes. "É um trabalho contínuo."