O Estado de São Paulo, n.46184, 29/03/2020. Política, p.A14

 

AS ANGÚSTIAS DO EXÍLIO NAS CARTAS DE JK A POETA

Vinícius Valfré

Dida Sampaio

29/03/2020

 

 

Reportagem especial / Cassado pela ditadura, ex-presidente troca correspondência com Augusto Schmidt e reclama do isolamento político e pessoal

É um capítulo de tensão da História do Brasil. No fim da tarde de 13 de junho de 1964, o expresidente Juscelino Kubitschek de Oliveira, de 61 anos, tentava esboçar um sorriso e passar pela multidão de apoiadores que forçava as barreiras da Base Aérea do Galeão, no Rio. Enquanto aliados entoavam o Hino Nacional e tentavam se aproximar dele, oficiais empunhavam armas para barrar a invasão e dirigir o político mineiro à escada do avião que o conduziria ao exílio.

Cinco dias antes, Juscelino tivera o mandato de senador pelo PSD de Goiás cassado pela ditadura militar. À imprensa, ele desconversou sobre o simbolismo de sua partida para Madri. Ao lado da ex-primeira-dama Sarah Kubitschek, disse que permaneceria no exterior por apenas três meses para compromissos que vinha retardando. O retiro, porém, duraria 985 dias, período em que mergulhou em sentimentos de profunda melancolia, saudade e ódio do regime que lhe golpeou.

O isolamento político e pessoal de Juscelino nos anos de chumbo ficaria registrado em correspondências. O abatimento e a indignação estão francamente expressos em 11 mensagens trocadas com o amigo, conselheiro e poeta Augusto Frederico Schmidt. Há também correspondência de dona Sarah e de amigos não identificados. As cartas e os telegramas, inéditos, foram obtidos pelo Estado e, agora – às vésperas de a utopia transformada em capital do Brasil por iniciativa de JK, a cidade de Brasília, completar 60 anos –, jogam luz à história. Os documentos foram cedidos à reportagem pelo editor José Mario Pereira, que pesquisa a obra de Schmidt.

Ao desembarcar na Espanha, JK avisou que permaneceria em silêncio diante de perguntas sobre a cassação de seu mandato de senador e da suspensão de seus direitos políticos pela ditadura militar que se instalara: “A melhor maneira de servir ao meu país, no exterior, é não discutir o que aconteceu”, disse, em Madri. Nas cartas ao amigo, por outro lado, desabafava sem censura.

“Por acaso, chegou-me às mãos agora o Jornal do Brasil. O editorial contra mim, colecionador de apartamentos na expressão deles, deixou-me verdadeiramente surpreendido. Por que tanto ódio? Por que tanta injustiça? Será que essas pessoas não pensam em Deus e não sabem que as injustiças, desde os tempos de Platão, constituem iniquidades que devem ser evitadas?”, escreveu ao poeta em 30 de junho de 1964.

Slogan. Augusto Frederico Schmidt gozava do prestígio de autor do slogan que acompanharia Juscelino à vitória na eleição de 1955 e do qual ele jamais se desvencilharia: “50 anos em 5”. Antes de se tornar amizade genuína, a aproximação com JK contou também com certo pragmatismo. O poeta era, sobretudo, um empresário, com voz ativa e bem relacionado. Ter seus préstimos poderia ser um diferencial na conturbada campanha marcada pelo suicídio de Getúlio Vargas e pelo ímpeto da oposição liderada pela UDN.

Os vínculos de Schmidt com o setor produtivo atraíram financiamento eleitoral para Juscelino. Também serviram para amainar críticas à inclusão de João Goulart como vice da chapa e ao apoio oferecido pelos comunistas. Com JK instalado no Palácio do Catete, Schmidt usou sua habilidade para “reduzir as distâncias” entre o presidente e multinacionais. O lobby convinha ao político que, hoje, é mais lembrado pela veia visionária, corajosa e desenvolvimentista do que pelo descontrole do gasto público ou pela herança da dívida externa.

Após a inauguração de Brasília, em 1960, e com Juscelino morando no Palácio da Alvorada, Schmidt permaneceu no Rio, mas manteve-se sempre próximo do presidente.

“Era uma pessoa muito importante na vida de papai, como amigo e como intelectual. Schmidt era mais pessimista, e papai ficava colocando otimismo nele. Depois da cassação, se aproximaram mais”, contou ao Estado Maria Estela Kubitschek, filha de Juscelino e Sarah Kubitschek.

Acordo. Após deixar a Presidência, Juscelino foi eleito senador por Goiás e passou a se dividir entre um apartamento na zona sul do Rio e um funcional na Superquadra 208 Sul, em Brasília. A amizade com o poeta-empresário se manteve. Schmidt esteve como testemunha da reunião, no início de abril de 1964, na qual JK obteve do general Castello Branco a garantia à manutenção das candidaturas postas para a disputa presidencial no ano seguinte, bem como a posse do nome a ser escolhido pelo povo.

Essa era a meta de Juscelino, líder das pesquisas de intenções de voto. Ávido por voltar ao Palácio do Planalto, do qual havia sido o primeiro ocupante, o então senador deu não só o apoio do PSD como também o próprio voto para confirmar Castello Branco como o presidente militar.

Mas, ainda discreta, a ditadura precisava de pretextos. Optou pelo discurso de combater o comunismo e livrar o País da corrupção. O poderoso JK foi selecionado como a representação de algo que precisava ser erradicado da vida pública. Investigações minuciosas foram instauradas contra ele e contra os dele.

O Ato Institucional n.º 2 veio a 27 de outubro de 1965. Castello Branco manteve a escolha indireta para presidente da República e jogou por terra o acordo que firmara com JK. Por cerca de três anos, restou a Juscelino buscar no estrangeiro, sobretudo em Lisboa, paralelos com a sua Diamantina (MG) para atenuar a saudade.

‘Neutros’. No exílio, JK viveu e trabalhou em Paris, Lisboa e Nova York. Os endereços ajudavam adversários a alimentar, no Brasil, a versão de que o expresidente tinha a “sétima fortuna do mundo”. Os militares não conseguiram justificar a cassação com alguma razoabilidade. Muito menos dar uma explicação política para liquidar da vida pública uma liderança de consenso e moderação, que sofreu duas tentativas frustradas de golpe justamente de radicais das Forças Armadas.

Do exterior, o ex-presidente acompanhava com indignação o que lia a seu respeito. A partir das cartas, descobria que nuvens espessas cercavam o Planalto Central. “Quero apenas dizer que os neutros e mornos partidários nominais da sua candidatura estão agora se atirando para a prorrogação do mandato presidencial”, datilografou Schmidt, do Rio para Paris, nos idos de julho de 1964.

Além de aconselhamentos políticos, as cartas revelam uma preocupação acolhedora de JK com o poeta. Schmidt enfrentava um edema pulmonar e Juscelino defendia uma temporada de repouso em Paris. Serviria como remédio para ambos. “Os nossos bate-papos poderiam ser maiores e me ajudariam a matar a saudade que persegue os que estão fora”, convidou.

Em uma das cartas, Juscelino contou ao amigo ter reproduzido imaginariamente um hábito diário que tinha no Brasil, o de telefonar para ele logo nas primeiras horas da manhã para comentar o noticiário e refletir sobre os acontecimentos.

As correspondências com Schmidt, claro, funcionavam também para trocar estratégias políticas. “Gostaria que você se desse conta apenas do seguinte: sua posição na política brasileira é, hoje, idêntica à do Getúlio, quando este voltou do seu recolhimento. Faça um esforço para se desembaraçar da ideia de que você precisa do PTB”, remeteu o poeta.

Saudades. Nas cartas, Juscelino expõe a frustração de viver longe da terra natal – e do poder. Além da distância, havia o inverno, estação da qual era avesso. Costumava dizer que preferia ingratidão humana ao frio de Nova York. No exílio, eram dois os tipos de vento que lhe cortavam o peito. “Os amigos que vieram para o casamento regressam dentro de poucos dias. Vou começar o inverno por fora e por dentro”, escreveu a Schmidt, contando sobre o casamento da filha Márcia, realizado em Lisboa no dia 30 de julho de 1964.

A intensidade epistolar aumentou no exterior também por uma razão de segurança. “Quando ele foi exilado, escrever cartas era uma forma mais segura de se comunicar com os amigos. Eram cartas não de meia dúzia de parágrafos, mas de três ou quatro páginas. Ali, naquelas linhas, ele podia se abrir sem medo de grampos, que sabíamos existir nas linhas de todos os seus amigos”, disse ao Estado Anna Christina Kubitschek, neta dele, filha de Márcia. Em três anos de exílio, foram apenas duas passagens rápidas pelo País.

Quando voltou em definitivo, a 9 de abril de 1967, Juscelino se reinstalou na vizinhança do poeta, no Rio. “Eram muito amigos e se falavam pela janela”, disse à reportagem a francesa Eliane Perrot, amiga próxima de Augusto e Yedda Schmidt, e a quem ficou em testamento a missão de criar uma fundação em memória ao casal.

O popular Juscelino só disputaria mais uma eleição – e perderia. Em 1975, ele tentou uma vaga na Academia Brasileira de Letras (ABL). O presidente da entidade, Austregésilo de Athayde, articulou o financiamento de um prédio em troca da derrota de Juscelino para Bernardo Élis, embora o romancista goiano fosse um grande nome da literatura. Essa versão era relatada por nomes como Josué Montello, segundo um amigo do acadêmico. Athayde nunca se esforçou para negar.

Na volta ao Brasil, JK ainda passava temporadas na Fazendinha, como chamava a pequena propriedade adquirida em Luziânia, Goiás, a 60 quilômetros do Plano Piloto. Estava proibido pelos militares de entrar em Brasília, uma cidade ainda em obras.

Visita. Em 1972, ele seguia na boleia de um pequeno Ford, dirigido por um amigo engenheiro, de Luziânia rumo a Planaltina quando, próximo do acesso à capital federal, começou a chover. Então, pediu ao motorista para seguir para Brasília. Havia sete anos que não pisava lá.

Primeiro avistou o Catetinho, o “Palácio de Tábuas”, que servia para abrigá-lo durante a construção da cidade. Numa das paradas do arriscado passeio, já no Plano Piloto, viu pela primeira vez a Catedral concluída. “Tive a sensação de estar entrando no coliseu romano, pois o templo me parece o símbolo maior da grandiosidade de Brasília”, disse ao jornalista Carlos Chagas, na época diretor da sucursal do Estado.

Na Praça dos Três Poderes, Juscelino chorou diante de seu busto. Depois, passou próximo do Palácio da Alvorada. O ex-presidente evitou ser reconhecido na W3 Sul, a avenida que abrigava o comércio. “Mas não deixei de me sentir como numa cidade fantasma, ou melhor, como um fantasma na cidade real.”

A visita foi relatada numa reportagem de Carlos Chagas. O texto rendeu um convite de Juscelino, estendido à família, para um almoço na fazenda de Luziânia. Filha do jornalista, Helena Chagas lembra que o ex-presidente os recepcionou montado num cavalo que levava as iniciais JK no lombo.

“Papai fez o texto e Juscelino ligou para agradecer e convidar para um almoço. Eu era criança e foi uma experiência maravilhosa. Sentamos à mesa com ele, que contou histórias do exílio”, lembra Helena. “Contou, por exemplo, que havia encontrado com Jânio Quadros, que disse a ele, com as mãos na cabeça: ‘Errei’ (sobre a renúncia em 1961).”

“Brasília não vê JK chorar”, texto publicado por Chagas no Estado, estava dobrado na carteira que o expresidente usava na fatídica viagem que fez de São Paulo ao Rio a 22 de agosto de 1976. Neste dia, Juscelino e o motorista Geraldo Ribeiro, num Chevrolet Opala, morreram num choque frontal com uma Scania, na Via Dutra.

Juscelino foi velado no Rio e depois em Brasília. Na capital, o corpo do ex-presidente chegou a ser levado nos ombros por uma multidão da Catedral de Brasília ao Cemitério Campo da Esperança, num cortejo de quatro horas, visto como um protesto espontâneo dos candangos contra a ditadura. “O povo leva!”, gritavam os moradores, que tomaram o caixão das mãos dos bombeiros.

O homem de sorriso aberto, longe do mau humor dos generais golpistas, não viu a consolidação da capital, hoje centro de uma região metropolitana de 4,2 milhões de habitantes, a quarta maior do País. Também não presenciou a reabertura democrática. Mas a cidade que ele construiu continua sendo, 60 anos depois da inauguração, o mais completo símbolo da democracia brasileira.

Correspondência

“Os nossos bate-papos poderiam ser maiores e me ajudariam a matar a saudade que persegue os que estão fora.”

TRECHO DE CARTA DE JK AO AMIGO AUGUSTO FREDERICO SCHMIDT

“Gostaria que você se desse conta apenas do seguinte: sua posição na política brasileira é, hoje, idêntica à do Getúlio, quando este voltou do seu recolhimento. Faça um esforço para se desembaraçar da ideia de que você precisa do PTB.”

TRECHO DE CARTA DE AUGUSTO FREDERICO SCHMIDT A JK