O globo, n. 31669, 21/04/2020. Opinião, p. 2
Quem controla?
Merval Pereira
21/04/2020
A melhor definição do momento atual foi dada pelo vice-presidente Hamilton Mourão outro dia, perguntado como iam as coisas. “Tudo sob controle”, respondeu o general, para complementar: “Só não se sabe de quem”.
A nota do Ministério da Defesa de ontem, reafirmando que “as Forças Armadas trabalham com o propósito de manter a paz e a estabilidade do País, sempre obedientes à Constituição Federal”, foi uma tentativa de mostrar quem está no controle. Importante é que o recado é claro: quem manda é a Constituição.
Não Bolsonaro, embora ele tenha tido um ataque de Luiz XIV ao dizer “Eu sou a Constituição”. Nem tampouco os próprios militares, pois tão nocivo quanto um autogolpe seria um golpe militar para tirar o presidente eleito democraticamente. Se for para sair, terá que ser através de métodos democráticos, como o “golpe” constitucional do impeachment.
Foi o desfecho de mais uma crise desencadeada pela retórica do presidente Bolsonaro no domingo, quando avalizou, com sua presença e discurso, uma manifestação que pedia a intervenção militar com o fechamento do Congresso e do Supremo Tribunal Federal, em frente ao Quartel-General do Exército em Brasília, no Dia do Exército.
Mais explícito do que isso, impossível. Bolsonaro mandava um recado: tenho o apoio das Forças Armadas, não mexam comigo. Como se os militares respaldassem as faixas e as críticas aos outros poderes da República. Deu um passo além de suas pernas, sugerindo, no limite, que, como uma das faixas dizia, haveria um autogolpe em seu benefício, em vez de seu impeachment, que ele acusa o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, de estar armando.
Como em outras vezes, os militares que fazem parte de seu ministério, e outros, como o general Vilas Bôas, ex-comandante e ícone do Exército, entraram em ação para contê-lo. Numa reunião na noite mesmo de domingo, no Palácio da Alvorada, os ministros Walter Braga Netto, do Gabinete Civil, Fernando Azevedo e Silva, da Defesa, Luiz Eduardo Ramos, da Secretaria de Governo, e Augusto Heleno, do Gabinete de Segurança Institucional, conversaram, a pedido deles, com o presidente sobre a crise desencadeada.
Ainda há uma compreensão pelo estilo de fazer política de Bolsonaro e, embora lamentassem que a manifestação tenha acontecido diante do QG do Exército, consideraram que o discurso do presidente não atingiu os demais poderes. Foram lenientes, sem dúvida, mas, mais uma vez, conseguiram que Bolsonaro recuasse de seu radicalismo retórico.
As notas de repúdio institucional de ministros do Supremo, de congressistas, dos presidentes da Câmara e do STF, de governadores, mostraram a Bolsonaro que ele tem que respeitar os limites constitucionais de seu cargo, mas faltava uma posição das Forças Armadas, que veio pela nota do Ministério da Defesa a propósito do combate à Covid-19.
A novidade desta vez é que alguns dos ministros militares que trabalham no Palácio do Planalto, e até generais da ativa, mesmo que ainda minoritários no Alto Comando do Exército, já assimilam os argumentos políticos de Bolsonaro, e concordam que há um movimento a partir da Câmara para neutralizar as ações do presidente da República, quem sabe, no limite, decretando seu impeachment. Impressionante é que o argumento usado por Bolsonaro — se não for eu, será o PT — ainda encontra eco entre militares.
Bolsonaro, por sua vez, já deu diversas razões para ser impedido, esta última tendo sido apenas mais uma das transgressões que poderiam lhe custar acusações de crimes de responsabilidade. O presidente Jair Bolsonaro testa constantemente os limites: avança e, diante de reações fortes, volta atrás.
Mas até quando faz isso, mostra seu espírito totalitário. Ele tem que obedecer à Constituição, e não falar que é a Constituição. O entendimento dele sobre o que é democracia é completamente nulo, e por objetivo político, não por ignorância —embora seja ignorante em muitas coisas.
Na questão política, ele não quer dar espaço para outros poderes, não aceita ser limitado por ninguém, o que mostra o seu espírito autoritário. As cenas de domingo são inaceitáveis. As faixas que ele disse serem infiltradas foram feitas da mesma maneira, colocadas em pontos estratégicos, ele sabia perfeitamente o que aconteceria. Poderia ter mandado abaixar as faixas, se realmente não concordava com elas. Quem manda é a Constituição.