O globo, n. 31647, 30/03/2020. Especial Coronavírus, p. 4

 

O tour das transgressões

Bernardo Mello

Bruno Goés

Thais Arbex

30/03/2020

 

 

 Recorte capturado

Passeio de bolsonaro ignora mandetta e piora relação dos dois

Um dia depois de o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, ter afirmado que a orientação do governo federal era que os brasileiros permaneçam em casa, respeitando distanciamento social, o presidente Jair Bolsonaro saiu na manhã de ontem do Palácio da Alvorada para um passeio por cidades-satélites de Brasília em que transgrediu inúmeras recomendações médicas e voltou a defender adoção de práticas diferentes da posição de técnicos do ministério.

O presidente visitou comércio de rua abertos em Taguatinga e Ceilândia, esteve perto de aglomerados de pessoas, teve contato físico com cidadãos. Em conversas com eleitores e também em entrevista, voltou a defender o “isolamento vertical”, em que apenas idosos e integrantes de grupos de risco ficaram distanciados, e minimizar a epidemia. Especialistas ouvidos pelo GLOBO afirmaram que Bolsonaro fez “tudo que não deve ser feito” e que passou uma mensgem “deseducadora” à população.

À noite, o Twitter excluiu dois vídeos do passeio que o presidente havia publicado em sua conta na rede social por considerar que eles colocam as pessoas “em maior risco” de transmitir o novo coronavírus. Em nota, a rede social afirmou que “anunciou recentemente em todo o mundo a expansão de suas regras para abranger conteúdos que forem eventualmente contra informações de saúde pública orientadas por fontes oficiais e possam colocar as pessoas em maior risco de transmitir COVID-19”. O Planalto afirmou que não comentará o caso.

Ao desautorizar publicamente o ministro da Saúde, Bolsonaro agrava a crise política que dominou o fim de semana no governo. Pessoas próximas a Mandetta disseram ao GLOBO avaliar que deve haver uma escalada dos conflitos entre os dois. Esses aliados relataram que, durante a semana, o ministro chegou a classificara situação como “insustentável ”. Conselheiros, então, entre os quais o presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), reforçaram os apelos para ele “aguente o tranco” e “toque o barco”. A avaliação unânime levada a Mandetta é a de que, hoje, os brasileiros confiam e precisam no trabalho que o ministro tem desempenhado.

Segundo relatos, Mandetta foi à reunião ministerial no Palácio do Alvorada no sábado com o objetivo de saber se teria carta branca e liberdade para continuar defendendo medidas baseadas na ciência ena medicina. Do contrário, não teria condições de permanecer nocargo.

A resposta, dizem aliados, veio com a coletiva de Mandetta naquela tarde, em que o ministro reafirmou a defesa do isolamento social, repudiou a versão de que a hidroxicloroquina é a cura para doença e criticou os atos pela reabertura do comércio pelo país. A avaliação de aliados de Mandetta é a de que os próximos 15 dias serão determinantes para mostrar quem está certo: se o ministro da Saúde ou o presidente da República.

GUERRA DE LIMINARES

Em outra reunião no sábado, da qual participaram o ministro Gilmar Mendes, do STF, e os ministros da Secretaria Geralda Presidência, Jorge Oliveira, da Advocacia-Geral da União, André Mendonça, e do Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho, Bolsonaro foi alertado de que, se tentar flexibilizar as regras de isolamento social por conta do novo coronavírus na “canetada ”, enfrentará uma difícil batalha na Justiça. A avaliação levada ao presidente é a de que o momento exige uma ação coordenada entre o governo federal, Estados e municípios para controlar o avanço da pandemia no país e, ao mesmo tempo, evitar um colapso nos serviços e atividade essenciais.

Bolsonaro deu pistas de que pretende ignorar esse conselho. Ao chegar ao Alvorada após o passeio na manhã de ontem, o presidente disse pretender editar um decreto que autorize as pessoas a voltara trabalhar. em conflito com decisões de governadores determinando a suspensão de várias atividades.

— Eu estou com vontade de baixar um decreto amanhã (hoje). Toda e qualquer profissão, legalmente, existente ou aquela que é voltada para a informalidade, se for necessária para o sustento dos seus filhos, vai poder trabalhar — disse Bolsonaro, prevendo batalha judicial após a decisão que derrubou sua medida provisória que permitia a reabertura de lotéricas. — Vai ser uma guerra de liminares.

Durante o passeio em Ceilândia, Bolsonaro perguntou a pessoas que se aglomeraram em volta dele na porta de um supermercado o que elas achavam da regra de ficar em casa. Em meio a gritos de “mito” e pedidos para foto, ele levantou a questão:

—Na ideia de vocês, o povo tem que trabalhar ou não? — perguntou Bolsonaro.

As pessoas responderam positivamente:

— Tem que trabalhar sim, rapaz. O Brasil tem que andar, não pode parar, não — respondeu um dos presentes.

Perguntado sobre o descumprimento de orientações do ministério, o presidente disse que estava “trabalhando, vendo povo, perguntando o que eles acham de trabalhar ou não”, e que o passeio se deu de forma “aleatória”, sem escolha prévia dos destinos.

Para a presidente da Abrasco (Associação Brasileira de Saúde Coletiva), Gulnar Azevedo, Bolsonaro passou um sinal “totalmente negativo” em relação às orientações do ministério da Saúde.

—As pessoas só deveriam ir à rua em caso de necessidade urgentíssima. E, mesmo assim, não deveriam estar conversando, próximas. É muito deseducador que o chefe da nação transmita essa imagem — avaliou Azevedo.

— Ele fez tudo que não é para ser feito.

“Eu estou com vontade de baixar um decreto amanhã (hoje). Toda e qualquer profissão, legalmente, existente ou aquela que é voltada para a informalidade, (...), vai poder trabalhar”

Jair Boslonaro

 “As pessoas só deveriam ir à rua em caso de necessidade urgente. E, não deveriam estar conversando, próximas. É deseducador que o chefe da nação transmita essa imagem. Ele fez tudo que não é para ser feito”

Gulnar Azevedo, presidente da Assoc. Bras. de Saúde Coletiva