O globo, n. 31646, 29/03/2020. Opinião, p. 2

 

Ações desencontradas

Merval Pereira

29/03/2020

 

 

A ação desagregadora do presidente Jair Bolsonaro torna-se mais grave neste momento em que é necessário que o país tenha um rumo no combate à pandemia do Covid-19. Bolsonaro toma decisões sem consultar seus ministros mais afeitos aos problemas, como Paulo Guedes, da Economia, e Luiz Henrique Mandetta, da Saúde, e provoca crises intestinas que se refletem em decisões postergadas ou desencontradas. Quando resolveu aumentar para R$ 600 o voucher para os informais a fim de não deixar que o presidente da Câmara Rodrigo Maia, que propusera aumentar de R$ 200 para R$ 500, saísse como o grande benfeitor dos pobres, Paulo Guedes não foi consultado.

Quando fez o pronunciamento defendendo o fim da quarentena horizontal, também não falou com Mandetta. Paulo Guedes foi para o Rio depois de conflitos com o presidente sobre o montante de gastos na crise, situação aparentemente superada, como demonstra o vídeo que Guedes gravou, engajando-se na política de Bolsonaro.

O ministro Luiz Henrique Mandetta está querendo se equilibrar entre o lado técnico e o político, e só faz aumentar a incerteza a respeito das diretrizes do governo. Ontem, em seu pronunciamento depois de uma reunião no Palácio da Alvorada com o presidente Bolsonaro e outros ministros, Mandetta não mudou nenhuma orientação, como exige sua equipe técnica, mas acenou com mudanças a curto prazo, o que não parece viável.

Para agradar ao presidente, voltou a defender a tese de afrouxamento da quarentena e chamou os meios de comunicação de “sórdidos”. Mas desaconselhou as carreatas a favor da volta à normalidade e não mudou a política vigente.

O clima de desobediência civil espraia-se pelo país, e as ruas continuam vazias depois do pronunciamento estapafúrdio do presidente Bolsonaro defendendo o fim do isolamento social prescrito por cientistas e pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como o melhor meio de conter a disseminação do novo coronavírus. A Justiça impediu que continuasse a ser veiculado o vídeo, produzido dentro do Palácio do Planalto, pedindo o fim do confinamento, e a polícia proibiu carreatas previstas para ontem em diversos pontos do país. Enquanto o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, encarrega-se da politicagem palaciana, seus técnicos reafirmam as recomendações sanitárias, sem alterar a política de contenção da pandemia, segundo declarações do secretário executivo do Ministério da Saúde, João Gabbardo dos Reis.

Ontem, o Ministério da Saúde enviou para todos os secretários estaduais recomendações que reforçam as medidas, como proibição de aglomerações em shows, cultos, futebol, cinema e teatros. No dia anterior, o presidente Bolsonaro defendera a volta dos jogos de futebol, com público reduzido.

O documento traz medidas mais severas e prevê o fechamento das escolas e universidade até o fim de abril, podendo a recomendação ser estendida a maio. Mandetta não desautorizou as diretrizes, mas disse que estão em discussão.

Parece querer ganhar tempo com essa postura dúbia, na melhor das hipóteses para organizar melhor o sistema de saúde pública a fim de enfrentar o pico da crise, esperado para os próximos meses. Na hipótese mais cruel, está apenas manobrando para continuar sob os holofotes.

Várias entidades nacionais estão conclamando a desobediência civil, diante das evidências internacionais de que o melhor caminho científico está sendo ignorado pelo presidente. CNBB, OAB, ABI, SBPC, Academia Brasileira de Ciências soltaram uma nota conjunta defendendo o confinamento e classificando as atitudes do presidente Jair Bolsonaro de “campanha de desinformação” e “grave ameaça à saúde dos brasileiros”.

O presidente do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass), Alberto Beltrame, afirmou que a entidade não apoia “qualquer recuo no sentido de afrouxamento de isolamento, e sim uma transição na direção de sua ampliação, na medida da necessidade”. Isso porque o mês de abril está sendo considerado crucial para controlar a Covid-19.